quinta-feira, 29 de maio de 2008

Sobre perdas


"Ninguém o pode aconselhar ou ajudar - ninguém. Não há senão um caminho. Procure entrar em si mesmo. Investigue o motivo que o manda escrever; examine se estende suas raízes pelos recantos mais profundos de sua alma.(...) Procure soerguer as sensações submersas desse longíquo passado: sua personalidade há de reforçar-se, sua solidão há de alargar-se e transformar-se numa habitação entre lusco e fusco diante da qual o ruído dos outros passa longe, sem nela penetrar.(...) Aceite seu destino e carregue-o com seu peso e sua grandeza, sem nunca se preocupar com recompensa que possa vir de fora. O criador, com efeito deve ser um mundo para si mesmo e encontrar tudo em si e nessa natureza a que se aliou." Cartas a um jovem poeta - Rainer Maria Rilke

Aconteceu. Eu nunca poderia imaginar que de uma hora pra outra isso aconteceria. Sim, ele estava dando pequenos sinais de fraqueza, lentidão. Eu reclamava, desistia, mas não prestei a menor atenção ao que isso podia significar. Meu computador morreu. O HD pifou. Perdi todos os meus documentos e um monte de coisas com muita e nenhuma importância. Tudo foi embora, muitos e muitos rastros de mim. Todas as fotos dos meus trabalhos se foram, todos os registros do que eu fui capaz de criar, sumiram.
Isso me pareceu a cereja do bolo no contexto da minha vida, atualmente. E surpreendentemente, eu peguei a cerejinha e mastiguei bem devagar. Parei tudo. Sentei e chorei. Respirei. Levantei, tomei banho, me arrumei e fui pruma reunião de trabalho sem material algum. Saí de lá e fui pra assistência técnica onde foi constatado o dano desastroso. Deixei o computador, voltei pra casa e observei um tempão o espaço que ele ocupava na mesa.
Por que escrevo sobre isso?
Esse episódio do computador foi só a versão literal e concreta do meu processo atual. Não importa o quão poderoso, eficiente algo ou alguém seja. Sempre é preciso atenção. Atenção e não controle, porque tudo está sujeito a "pifar" de uma hora pra outra.
Tenho tido muito foco, mas pouca atenção, a ponto de perder o entorno. Como uma cabra persistente subindo a montanha com a cabeça enfiada no peito, olhando o chão. Outras vezes sou como um cavalo galopando em campo aberto, sem atentar aos detalhes e sem muitos limites. Na maioria, um touro sangrando e mesmo assim batendo cabeça numa tourada até seu derradeiro fim.
Depois que retomei o prumo, fiquei com inveja da máquina, talvez ela não tenha pifado. Talvez ela tenha dado um salto para outra consciência! (rio até chorar com essa colocação maluca). Queria que meu HD tivesse pifado de vez pra colocar outro no lugar! Sem controle algum, tudo apagado, sem rastros! Que sensação de liberdade!
Ver meu computador funcionar de novo com sistema operacional e programas mais modernos, parece mais uma loucura mas me fez sorrir. Será que pode ser assim comigo também pane após pane? Ficar vazia de tudo, cheia de espaço no HD?
Conversei comigo mesma na cama a noite toda, triste e sem sono. Acordei e um dia surpreendente aconteceu, novas alternativas e constatações. Uma delas é que quanto mais maduro estamos, mais aceitamos ser desafiados pela vida. Quanto mais nos entregamos a imaturidade, mais precisamos de explicações. Outra é que preciso atentar aos limites mais uma vez. Limite das minhas fraquezas e poderes. Limite do que posso oferecer e quero receber. Chega de querer acertar as respostas sempre, chega de querer passar mensagens corretas. Limites pra mim, limites para o outro. Até onde vai, onde pára e onde não há realmente limites. Parece paradoxal a idéia de liberdade, mas talvez contemplar e respeitar limites, nos dê um pouco mais de autonomia e nos torne hábeis para uma verdadeira liberdade.

Quando achei que tudo tava em certa ordem e controle, perdi o chão. Quando achei que tava perdida, tava tudo certo. É bom não ter nada de vez em quando. É bom aprender a perder e reconhecer quando estamos por baixo. E é muito bom, ter um punhado de gente boa por perto nessas horas extremamente solitárias de perdas e dúvidas. E é gratificante saber ser sozinha mesmo com muita gente ao redor.
Pra quem quiser ir mais a fundo no tema, assista "Piaf". Lindo filme, linda história. Edith Piaf viveu perda após perda na carne e mesmo assim manteve um olhar lindo de menina e com seu corpo franzino e frágil expôs em forma de arte todo o amor e intensidade que tinha dentro do peito. Transmutação em forma de canto. E não é assim com os grandes artistas?

"Non, rien de rien (Não, absolutamente nada)
Non, je ne regrette rien (Não, eu não lamento nada)
Ni le bien qu'on m'a fait (Nem o bem que me fizeram)
Ni le mal (Nem o mal)
Tout ça m'est bien égal (Isso tudo me é indiferente)

Avec mes souvenirs (Com minhas lembranças)
J'ai allumé le feu (Acendi o fogo)
Mes chagrins, me plaisirs (Minhas mágoas, meus prazeres)
Je n'ai plus besoin d'eux (Não preciso mais deles)
Balayés les amours (Varridos meus amores)
Avec leur trémolo (Com todos os seus tremores)
Balayés pour toujours (Varridos para sempre)

Je repars `a zéro (Vou recomeçar do zero)"


P.S: Dedicado ao Herbert, Massao, Erica e Mirene.

7 comentários:

kellybounce disse...

Girassol,

Estou viciada no seu blog... sério - entro todo dia pra ver se tem texto novo...

Desculpa, mas tive uma crise de riso quando você disse que seu computador vinha dando pequenos sinais de fraqueza e que morreu. Não ri da sua perda, mas da minha incapacidade de aceitar as minhas perdas e insitir em coisas que não tem mais jeito (em todos os aspectos da minha vida - pequenas ou grandes). Não sei abrir mão, deixar acabar, deixar ir sem uma boa briga. Estou aprendendo agora e, por coincidência (ou não), resolvi começar pelo meu computador.

Meu dinoPC, que nem é mais fabricado (coitado), está comigo há mais ou menos 7 anos, e sempre me serviu muito bem (na medida do possível). Tem dado sinais de fraqueza (assim como meu monitor jurássico) e ignorei durante alguns anos pra não ter que substituir nada (parece coisa de velho que acostuma e se afeiçoa com certas coisas e não aceita nada novo no lugar).

E sou assim com tudo - quero que tudo dure pra sempre, apesar de saber, racionalmente, que isso seria uma tortura muito maior do que passar pelas perdas e renovações contínuas dessa vida.

Viciei nos seus textos porque você expressa melhor do que eu o que acontece comigo... (risos) É ótimo entrar aqui e descobrir essa janela pra um outro 'eu' que eu nem sempre consigo acessar...

bjs

Alê Marcuzzi disse...

Kelly, mais uma vez obrigada pelas palavras.
Rir é um ótimo indício e começo. Aceitar, outro.
Se eu posso dar algum conselho, digo, contemple. Observe. Pois aprender a perder estou aprendendo agora, décadas depois do meu nascimento e porque a vida está sendo ninja! rs.
Racionalmente conseguimos transformar até um certo ponto, eu acredito, o desafio é ir além disso, e penso que apenas silenciando e contemplando podemos respirar de verdade para dar os próximos passos.
E mesmo assim não é nada fácil, mas é muito bom tentar Kelly, sempre. Arrisque-se em relação a vc mesma, ouse. Pela minha experiência, não há melhor forma de enfrentar o medo, inclusive de perder.
E temos sempre um coração para nos guiar, isso é maravilhoso.

Se você vê aqui uma janela, é porque essa janela já existe aí também e está sempre disponível para vc acessar.

Ah, assine o feed pra vc não precisar entrar toda hora. Aí vc recebe o texto na hora em que ele sai do forno.

Anônimo disse...

Oi... fiquei outro tempo a observar o seu Blog e assim absorvendo o essencial.

Esse texto/fato veio para mim em tempo certo - Acabo de ver Piaf e acabo de perder uma pessoa querida.

Vejo que esta pessoa era minha luz e minha HD. Mas agora também vejo que a perda me fez realmente dar sentido/valor ao que ela me representa.

Mais uma vez você Girassol, regando corações eletrônicos.

Obrigado!

kellybounce disse...

Oi, Girassol.

Não sei se é meu browser, mas não vi opção de assinar feed no seu blog... rs De qualquer forma, gosto de dar uma olhada nas páginas todos os dias - é uma rotina que tem me feito bem (me distrai e evita que meu cérebro fique sempre batendo naquela mesma tecla).

Realmente nunca fui muito de contemplar nada - sempre fui de agir primeiro e contemplar os efeitos catastróficos das minhas ações desajeitadas depois... rs Estou aprendendo, apanhando muito (e eu achava que já tinha apanhado muito) e descobrindo um 'eu' de quem eu gosto mais.

E é assim mesmo, né? Levei 30 anos de vida, 8 anos de casada, pra descobrir que eu tenho valor, independente do valor que me é atribuido. Até pra aprender isso a gente tem que perder um pouco (às vezes muito)...

E o Hermes tem razão - às vezes aquela perda que causa tanta dor é justamente o que dá maior sentido e direção às nossas vidas e aos nossos relacionamentos...

bjs

Alê Marcuzzi disse...

Oi Hermes, que bom que passou por aqui mais uma vez, eu é que agradeço seu comentário.
Perder não é novo pra mim, mas saber o que fazer com isso pode soar arrogante, mas é. E é o que a Kelly e você escreveram, tudo depende do significado e do olhar que damos as perdas.
E é muito delicado esse assunto, pois pra cada pessoa a perda e o que se perde tem um sentido muito particular. De qualquer forma, como humanos que querem buscar um pouquinho mais nessa existência, penso que o caminho seja olhar mais amplamente tudo o que se refere a essa dor, isso dá um pouco mais de serenidade pra começar a lidar com algo que foge completamente ao nosso controle e dói tanto.

Fico contente com essa troca, obrigada.

Anônimo disse...

Olá!

Kelly e Girassol, tenho ainda aqui de completar algo que faltou escrever, algo que foi reflexão única e decisiva que observei:

Devemos dar valor a algo ou alguém, não por aquilo que ela nos trazia, não... se lhe trazia felicidade isso é conseqüência.

Mas ainda assim é egoísmo de nossa parte, um egoísmo sutil. Mas o valor real está no que ela era, ou seja, o próprio ser dela.

Resumindo: o valor está no Ser e não no Trazer.

Obrigado!

Massao Asaga disse...

Obrigado!
Obrigado pela dedicatória, não me sinto merecedor, mas fico feliz em ter ajudado... e obrigado pela ajuda, por compartilhar comigo os frutos do que semeamos juntos.