segunda-feira, 28 de setembro de 2015

O que aprendo com o não perdão


foto: Alessandra Marcuzzi


“O verdadeiro perdão é o não perdão” Lama Padma Samten

E se não precisássemos pedir desculpas e nem perdoar?

Em uma oficina de Comunicação Não- Violenta o facilitador sugere que, após todo um estudo e dinâmica anterior, simulássemos um diálogo entre nós e alguém com quem gostaríamos por alguma questão que estivesse em conflito. Primeiro entraríamos em contato com nossas necessidades diante do que nos incomodou na questão. Depois, em empatia com a necessidade por trás da atitude que nos incomodou. E então um colega faria o papel dessa outra pessoa para que praticássemos o diálogo sob a mediação do facilitador.
Nessa dinâmica, num determinado momento uma colega, na posição do outro com quem seria meu diálogo disse: “tudo o que eu queria era um pedido de desculpas”. Naquele momento um silêncio tomou conta de mim... Como poderia pedir desculpas por algo pelo qual não sentia culpa? Como entrar em empatia, comunicar necessidades sem precisar desse artifício?

A partir do relato do facilitador um universo todo se abriu para mim.
No dia anterior durante a prática de uma colega eu acabei dormindo no sofá e me senti muito mal por isso. Então esse foi um bom exemplo para o caso das desculpas. Queria pedir desculpas mas não parecia essa ser a melhor forma de expressar o que sentia, foi quando ele sugeriu:

“Eu gostaria de ter tido mais presença durante a sua prática, isso é algo importante para mim. Eu estava cansada mentalmente e caí no sono sem perceber, tinha essa necessidade de descansar. Gostaria que você soubesse disso.”

Quando pedimos desculpas, “tiramos a culpa”, supomos que havia uma culpa nossa e com essa palavra mágica isso é retirado. E toda desculpa supõe um perdão para ser validada. O que me ocorre é o quão vazio e automático pode ser este gesto quando ele não representa algo verdadeiro para quem diz. Mas se olharmos para nossas necessidades e para as necessidades do outro e, abraçando nossa vulnerabilidade, conseguirmos expresar de forma autêntica o que aconteceu isso gera uma restauração mais profunda daquela questão que queremos resolver pois nos conectamos em outro nível.

Outro aspecto é que a solução não pode ser mais importante que a pessoa. Aprendi nessa vivência que nem sempre conseguimos atender a necessidade do outro e a nossa ao mesmo tempo e que existe uma necessidade que está acima dessas duas: a necessidade de conexão
Este é o tesouro que está por trás de tudo que queremos resolver com os outros, tudo o que mais queremos, pensemos da mesma forma ou não, tenhamos a mesma necessidade ou não é que a conexão seja mantida. Se desconectamos, não há como solucionar. Se focamos apenas na solução não comunicamos de forma não violenta pois "objetificamos" o outro em favor de um resultado que  nós esperamos. É preciso que a maior importância seja o outro ser com quem queremos restabelecer essa conexão e não a solução do conflito apenas.

E que é possível relaxar quando não é possível que as necessidades se encontrem e que isso não precisa ser um problema. Por exemplo: não importa se alguém não quer contato com você, se te ignora na rua, se te agrediu em palavras, se te julgou.
Havendo entendimento de que essas atitudes podem significar uma preservação, necessidade de silêncio, de espaço etc… havendo empatia não há espaço para ressentimento. A aceitação da necessidade do outro e a paz com a nossa necessidade já são em si um “perdão” muito mais profundo e mais consistente. Dessa forma ele não terá como base as expectativas, apenas o profundo respeito de cada um. Quando acolhidas suas próprias necessidades e a do outro é gerada e mantida a conexão, mesmo que a distância e o não contato pessoal permaneçam.


quinta-feira, 2 de abril de 2015

Cinderela


O conto de Cinderela sempre me interessou e me tocou principalmente pelas qualidades e desafios da personagem.  
A versão da Disney que está em cartaz me encantou por sua leitura muito próxima de como vejo essa história.

Ella é uma garota que nasceu em condições muito favoráveis: sob a criação de uma mãe dedicada, amorosa e que nutria o olhar muito especial para o "invisível" da vida em si e para a filha e um pai que, apesar de viajar muito, não era menos atencioso e carinhoso. Apesar das referências ao machismo que muitos referem a esse conto, Cinderela é para mim uma história tipicamente sobre o feminino em suas diversas formas: a humana (Ella), a divina (fada madrinha) e a sombria (madrasta). Esse tripé está presente em todos nós, seja integrado ou fragmentado, mas no conto em especial ele tange o Universo feminino na relação entre esses personagens e esses simbolismos.

A vida de Ella passa a se transformar com a morte da mãe e a chegada da nova esposa do pai, que se mostra com certa fraqueza diante do imperativo da madrasta sem notar sutilezas importantes no ambiente do lar. Com a morte dele, Ella se reinventa para adaptar-se mas acaba como uma serviçal de sua madrasta e irmãs. Para isso, muitas vezes segue numa resignação cômoda e dependente que a fragiliza e outras, fazendo o que precisa ser feito com o intento de honrar uma tradição familiar e seguir  a sabedoria da mãe de que não importa o que lhe acontecesse ela conseguiria passar por tudo se mantivesse "coragem e gentileza". Aos olhos mais céticos pode parecer muito piegas, mas se olharmos mais profundamente percebemos que esses valores que a norteiam não são pouca coisa para se praticar e que realmente a colocam em posturas íntegras diante das circunstâncias. 
Acontece um interessante paradoxo: enquanto ela mesma se coloca em situações que vão abafando todo esse potencial interno que existe não se dá conta do que aquilo está fazendo com sua vida e seu entorno. Ao mesmo tempo esse potencial que se mantém "cristalino" (como o sapatinho) apesar das circunstâncias quando não expressado com integridade a leva a uma vida reduzida a sobreviver e barganhar.

O que ocorre com Ella no meio do caminho é que seu olhar transcendente diante da vida realmente continua trazendo um sentido muito mágico 'a ela. Mas sua acomodação e falta de empoderamento diante de alguns grandes desafios, quando passam dos limites a tornam alguém com as potencialidades tão pouco aterradas e reveladas que a reduzem a uma situação maltrapilha. Tanto que o apelido Cinderela dado pelas irmãs é por viver perto das cinzas de tal modo que está sempre suja delas. E é a própria Ella que escolhe assim viver, primeiro num sótão, depois perto das cinzas, no chão da cozinha em busca de algum calor. Ella nem nota que já está passando dos limites de se colocar em um lugar tão pequeno na vida e o quanto, mesmo com essa visão especial que segue nutrindo, está cega numa repetição de tarefas que a fazem girar em círculos.

Apesar de tudo Ella nunca ficou esperando um príncipe encantado nem alguém que a salvasse mas pouco fez até aquele momento com propriedade para sair da situação de submissão (muitas vezes sob o verniz de bondade) que não fazia bem a ninguém, principalmente a ela mesma. Quanto mais fazia todas as tarefas menos espaço deixava para que a própria madrasta e irmãs pudessem ocupar melhor seu tempo do que com futilidades, por exemplo. Não que Ella não fosse realmente boa, ela guardava em si essa pureza de valores e bondade genuína, mas que sob uma postura de submissão e resignação além dos limites para com ela mesma a colocavam num lugar de indignidade e não de humildade.

Então o primeiro sinal de algum empoderamento acontece quando corre com o cavalo sem sela, selvagem, para a floresta em busca de um respiro para a situação opressora em que se encontra. Nesse passeio ajuda a salvar um cervo e é aí que cruza com Kit (que se recusa a se apresentar como príncipe) e ela se encanta com o "aprendiz" que acaba de conhecer, não pela visão romantizada mas como alguém que a tocou pela troca que tiveram (além de tudo ele promete não matar o cervo, o que significa muito para ela).

Ella começa a engatinhar rumo a uma transgressão quando a madrasta nega um vestido para o baile. Ingenuamente acreditando que vai conseguir ir com seu consentimento (mais uma cegueira), conta com a ajuda dos ratinhos que a acompanham desde a infância (que chama de seus ínicos amigos) para costurar um vestido para si. O limite acontece quando a madrasta não só não permite que ela vá ao baile como rasga partes dos vestido que era de sua mãe.
Nesse momento ela se revolta, sente raiva, se entristece e surge a fada madrinha que de elementos simples do dia a dia de Ella faz possível seu sonho se materializar. 
Note-se o quão simbólico e profundo é quando ela pede para a fada madrinha que não destrua o vestido da mãe, mas apenas o "transforme". Ella honra a preciosa e inspiradora figura da mãe que representa valores muito importantes ao passo que se empodera sem precisar abandoná-los. Ella transgride integrando valores primordiais que lhe são muito caros com essa mulher/princesa ciente de seu poder que está prestes a se tornar.
A fada madrinha é o veículo da potencialidade da imaginação criadora e a mentora que guia Ella para a vida adulta, para a mulher com as rédeas de seu destino.
Dessa forma chega ao baile apropriada de seu poder pessoal, sem perder sua inocência mas agora uma mulher decidida a cumprir o que se propõe. Ela dança e se relaciona não com o príncipe apenas, mas com o aprendiz que tem valor humano para ela e por isso o fascina e atrai. 

Desde o começo Cinderela sabe que terá pouco tempo de desfrutar do "sonho" e de forma alguma se sente frustrada ou ansiosa por isso. Ela vive cada momento daquela noite consciente de sua fugacidade, até mesmo considerando o tempo de "até meia noite" como "bastante tempo". Essa compreensão guarda a maturidade dessa Ella que surge: desfrutar a mágica sabendo que ela não dura para sempre e que tentar prolongá-la a levaria a situação maltrapilha novamente. Nessa aceitação é possível uma interação digna e íntegra com o príncipe. Ao escapar, deixa cair seu sapatinho de cristal, que simboliza o lugar que lhe pertence e ninguém pode tirar. Isso de certa forma a conforta internamente quando trancada no sótão pela madrasta para que o príncipe não a encontre com o sapatinho perdido: que viveu verdadeira mente aquela noite  e que o que foi vivido ninguém pode lhe tirar. Por honrar  sua vida ela não teme o futuro mas prossegue em seus valores que são expressados através do canto pela janela que, com a ajuda dos seres que com ela estão conectados, a fazem ser encontrada pelo príncipe. Outra boa característica dessa história: a colaboração de todos é que faz (também) a mágica dos sonhos possível.

E no fim das contas por Kit saber apreciar a princesa poderosa e a camponesa que fazem parte dela, Cinderela aceita se casar com ele.

A história de Cinderela representa o empoderamento pessoal com valores profundos integrados, e é isso que torna capaz o encantamento e mágica sempre possíveis no mistério da vida. Ao passo que apenas ter valores profundos sem colocá-los de fato a serviço de algo com consciência de si, seus limites e aspirações, por si só não levam a um caminho maior, mas apenas 'a sobrevivência. Da mesma forma que agir sem valores leva a uma sobrevivência vazia de sentido.
Cinderela simboliza essa união da mágica com a ação, da conduta de vida alinhada com atitudes, da apropriação do poder pessoal como algo que não serve ao poder no sentido de dominar ou estar acima, mas ao poder como potência de transformação da nossa vida e do nosso entorno (não seria essa a grande mágica do viver?). E que é necessário que nos apropriemos de nossos príncipes e princesas não como um status quo mas como um potencial que tem muito a oferecer sem esquecer das raízes do" não saber" do aprendiz e da simplicidade da camponesa.

Por acreditar em contos de fadas e fadas madrinhas como absolutamente "reais", essa história me comove.

Até por que, quem seria eu para duvidar? ;-)