sábado, 28 de março de 2009

A insustentável leveza do ser




"...é mais ou menos assim o instante em que nasce o amor: a mulher não resiste à voz que chama sua alma amedrontada, o homem não resiste à mulher cuja alma se torna atenta à sua voz."

Milan Kundera


Assisto, depois de alguns anos "Insustentável Leveza do Ser", filme de Phillip Kaufman baseado no excelente livro de Milan Kundera. Filme belíssimo, com atuações excelentes de Daniel Day- Lewis e Juliette Binoche.
É a história de Tomas, um médico que pretende levar a vida com "leveza", sem compromisso com as convenções sociais, políticas, morais que "pesem" em sua vida. Dessa forma, embarca numa vida sexual livre, onde se permite viver as experiências conforme sua necessidade interna.
A certa altura ele conhece Tereza, uma jovem ingênua, interiorana, que logo entra em sua vida. Ao mesmo tempo, tem uma relação intensa com a "única mulher que o entende", Sabina, que , como ele, leva uma vida de liberdade sexual.
Como pano de fundo a situação política da Tchecoslováquia em 1968, com a tomada de Praga pela Rússia, impondo um regime totalitário contrário a toda proposta de liberdade de expressão da Primavera de Praga (aqui também a idéia de peso/leveza, a leveza foi tomada pelo "peso"), que implica grandes mudanças em suas vidas.

Sem dúvida é um filme difícil se visto de um ângulo moral, mas extremamente rico de um ponto de vista mais amplo, além dos pre- conceitos.
Tomas é um homem muito interessante. Ao mesmo tempo que transita descomprometido pelo terreno sexual, a parte valores culturais e morais, não conseguimos vê-lo como um cafajeste. Sua postura é autêntica e ele a vive de forma natural, inclusive no trato respeitoso com as mulheres, sendo até reverenciador. Em primeiro lugar pelo olhar profundo que ele dedica a cada uma a que lança o imperativo "tire a roupa". Ele não invade, não corta, não violenta. Ele hipnotiza, penetra, cativa. Depois pela intimidade que tem com as as amantes, ele divide pensamentos, idéias, compartilha, não é simplesmente um caçador primitivo, ele se envolve com cada uma delas. Como bem citou um amigo, ele pensa que está em busca de sexo mas está em busca da intimidade (assim como todos nós), em cada mulher ele busca uma única mulher.
Mas essa "leveza" também acaba levando-o a uma impessoalidade tamanha auto-suficiência que ele desenvolve adotando uma postura um tanto narcisista.

Ao mesmo tempo, Tereza vem para quebrar muitos paradigmas na vida de Tomas. Com ela ele descobre uma intimidade mais genuína (finalmente acorda ao lado de uma mulher) e uma relação mais profunda, por mais que não deixe de prosseguir com sua vida de liberdade sexual. Mas em algum momento, essa liberdade, essa leveza de folha ao vento, não se sustenta mais para nenhum dos dois e eles são conduzidos a avaliar suas vidas.

Tereza chega de mansinho e entra na vida de Tomas como um cachorrinho abandonado na porta de casa. Com sua fragilidade aparente, seu jeito de "passarinho", delicado e puro, ela desenvolve com ele uma relação muito profunda e complexa. A princípio se propõe a aceitá-lo como é, mesmo perturbada pelas imagens de traição que constantemente tomam sua mente. Numa relação quase simbiótica de carência em ser parte desse universo pelo amor que tem por Tomas, ela acaba muitas vezes violentando sua própria natureza.
Quando, depois de muito se entregar e mergulhar no universo do parceiro ela percebe que não consegue levar adiante, aí sim aparece uma mulher mais inteira, mais íntegra, que transforma sua vida e a vida desse homem.

Na outra ponta do triângulo está Sabina. A mulher que "gosta de deixar os lugares", que acaba se envolvendo com Franz, um homem casado e "bom" como ela mesma gostava de dizer. Mas um homem racional, preso a padrões e conceitos civilizados, que confrontam com sua liberdade idealizada e sua forma natural de viver.
Sabina é como se fosse a versão masculina de Tomas, uma mulher ousada, inteligente, mas que se recusa a ter uma relação mais profunda de convivência com um homem, vivendo de forma solta, desprendida. Como se cada homem tivesse que permanecer no mito para ser um amante perfeito, a humanidade da convivência talvez fosse algo difícil para lidar dentro do modo de vida que escolheu.

Cada um desse triângulo tem suas qualidades especiais. A leveza de Tomas, sua presença em viver o momento, sua autenticidade. A entrega de Tereza a relação, indo além das fronteiras imaginadas, mostrando-se uma mulher forte e madura, disposta realmente a "amar melhor".
A personalidade forte de Sabina, sua generosidade, independência de pensamento. A relação de "amizade" das duas amantes, que numa das cenas mais belas do filme, ambas se fotografam nuas, confrontando-se num jogo de poder mas que acabam rindo, numa humanidade que as torna semelhantes, no amor pelo mesmo homem que as fazem investigar uma a outra, numa entrega quase visceral.

E o respeito dentro dessas relações que tudo tinham para ser promíscuas. Há o não revelado, mas não há a falta de escrúpulo. Há o erotismo, mas não há vulgaridade. Aliás um ponto forte é como o diretor registra os corpos das personagens numa plástica belíssima que nos faz admirar o corpo humano como ele é, num contexto natural, fluido como deve ser a relação entre os corpos, e a relação de cada um com seu próprio corpo.
Como o próprio Tomas diz, cada mulher tem seu detalhe, sua particularidade.

Saio da sessão com um sentimento de que homens e mulheres realmente têm naturezas distintas, o que exige um amor verdadeiro para a aceitação dessas diferenças e para uma convivência profunda e saudável. É preciso transcender a paixão pelo "objeto" e mergulhar no amor pelo "ser". Não adianta fisicamente tentarmos saber como é o lugar do sexo oposto, não adianta mudar a roupa nessa alma, as naturezas sempre falarão mais alto.
E a traição não é essa variedade de parceiros, é a infidelidade com nossa natureza, com o que somos. A verdadeira fidelidade é natural, é um prazer em estar com uma só pessoa. Se convencionada, ela perde sua autenticidade, sendo apenas uma regra moral vazia, que gera expectativa, insegurança e sofrimento.

Mas o filme também mostra que é possível viver tudo isso com a aceitação do peso e da leveza de ser o que se é, de se viver o que se propõe.
Tentar viver qualquer uma apenas, será absolutamente insustentável.


"(...)Não existe meio de verificar qual é a boa decisão, pois não existe termo de comparação. Tudo é vivido pela primeira vez, sem preparação. Como se o ator entrasse em cena sem nunca ter ensaiado. Mas o que pode valer a vida, se o primeiro ensaio já é a própria vida? É isso que faz com que a vida pareça sempre um esboço. No entanto, mesmo "esboço" não é a palavra certa porque um esboço é sempre um projeto de alguma coisa, a preparação de um quadro, ao passo que o esboço que é a nossa vida não é esboço de nada, é um esboço sem quadro(...)" -

Milan Kundera




P.S: Dedico ao Roberto Otsu pelas reflexões e muitas idéias aqui apresentadas em sua exibição na livraria Millenium.

terça-feira, 10 de março de 2009

Quem quer ser?


" I guess I knew the answers..." - Jamal Malik

Finalmente fui assistir "Slamdog Millionaire" traduzido como "Quem quer ser um milionário?", filme de Danny Boyle o mesmo diretor do ótimo Trainspotting.

Sem entrar muito no mérito formal, a edição e fotografia são os pontos fortes nesse sentido e as polêmicas das semelhanças com "Cidade de Deus" se reduzem a alguns takes, uma galinha e a fotografia "quente". Esse é um daqueles filmes que não consegui "rotular" de bom ou ruim, o que o tornou bem mais interessante. Isso se deu por algo curioso: enquanto estava sendo levada pelas emoções do drama de um lado B da Índia tão idealizada, onde miséria e violências de tantos tipos se mesclam com a beleza, era fisgada mas como se assistindo a uma novela. Lá pelo meio, meu olhar mudou e fez toda a diferença: atentei aos simbolismos e comecei a ver o filme como uma fábula pop, o que de alguma forma flexibilizou muito minha resistência e preconceito com a história.
Isso foi possível graças a ótima narrativa que "costura" as perguntas do TV Show com a crueza da vida real da personagem. O jogo dos dois lados, as dualidades, me trouxeram boas reflexões.

Jamal Malik cresceu nas favelas de Mumbai, onde passou por circunstâncias duras, cruéis. Durante o filme a gente vai descobrindo com Jamal as respostas que não temos, as que achamos que temos e as que queremos ter. Ele vive sua vida "respondendo o que perguntam", dizendo a verdade, numa simplicidade impressionante. Ora protegido pelo irmão Salim, ora por algum tipo de "redoma" que o cerca, ele atravessa as dificuldades com um caráter interessante, aquele que até comete deslizes pela sobrevivência mas que mantém algo de digno, puro, no íntimo.

Enquanto passa pela vida, Jamal não tem as respostas, até porque não há tempo para muitas perguntas para quem precisa imediatamente sobreviver. Em um game show, em que precisa das respostas, ele não sabe que sabe, mas por ter vivenciado muitas situações ele faz conexões com as perguntas e todas as respostas se abrem pra ele.
E no desfecho ele conclui que acha que sempre soube as respostas.

A história de amor que o move é sua parte "pura" representada por Latika. Ele se move em direção a Latika o tempo todo, ela o faz sair de si mesmo ou de apenas sobreviver. O amor por ela nada mais é do que o espelho dele mesmo. Jamal cresceu sabendo servir, fosse apenas para sobreviver ou por amar, talvez por isso ele tivesse essa espécie de "blindagem" ou "sorte".

Essa é nossa vida, questionamos o que nos acontece, ansiamos por respostas e mais, por dar a resposta certa. Buscamos das mais variadas formas encontrar algo fixo (seja uma verdade, uma realidade, uma pessoa, um milhão) que nos dê a segurança de que temos onde apoiar -nos por um bom tempo ou uma vida inteira.
Na "hora da verdade", é como se não soubéssemos de nada, ignoramos tudo que já vivenciamos, quando não nos arrependemos, culpamos, lamentamos, como se o futuro fosse encarregado de dar algum parecer final que nos acalente a alma.
Não há parecer final senão a partir do que foi vivido e essa é a grande sacada que o filme me mostrou. No fim das contas, seja lá onde cheguemos, chegamos por percorrer um caminho e esse caminho fica mais leve se não nos preocuparmos tanto em dar a resposta certa, ganhar ou perder. Talvez isso acabe determinando o que "está escrito" ou a "sorte". Se estava escrito, Jamal foi co-autor dessa história o tempo todo.
Grande parte do tempo estamos como num game show onde corremos atrás de um prêmio e nos colocamos a perguntar e a responder ao mesmo tempo. Mas não temos as respostas, vivemos as respostas. Assim como não chegaremos a nenhum lugar, o lugar é o caminho, essa é uma interessante ironia.

Na minha opinião o melhor do filme é isso: como uma bela fábula ele nos tira um pouco do nosso microcosmo e nos conduz além. O mito de todos nós na comum figura de um "garoto do chá".

E no final a esperança, a esperança real de se viver a vida que se tem.
Esse é o grande prêmio.




"Ser ambicioso na prática do paramita é uma preparação para o fracasso. Quando desistimos da esperança de fazer tudo direito e do medo de fazer errado, compreendemos que tanto ganhar quanto perder são aceitáveis. Em qualquer dos casos, nada temos a que nos apegar.
De momento a momento, estamos viajando para a outra margem." Pema Chodron


P.S: Dedico a querida Renata, uma das trocas mais preciosas que há.
Dedico ao grande medo e êxtase das respostas que não tenho.