sexta-feira, 5 de fevereiro de 2016

Ensaio sobre relações patriarcais

Saturn devouring his children - Daniele Crespi

Saturno ou Cronos (equivalente grego) é um titã na mitologia greco-romana que casou-se com sua irmã Reia que lhe deu seis filhos.
Como tinha medo de ser destronado por causa de uma maldição, Cronos engolia os filhos ao nascerem.


"O mal da civilização é a mente patriarcal. Não me refiro apenas 'a sociedade patriarcal que faz com que os machos predominem sobre as mulheres e tenham um acesso mais fácil ao poder e economia. Refiro-me a uma paixão pela autoridade. Pelo ego, o ego patrístico, um complexo de violência, excesso, voracidade, consciência isolada e egoísta, insensibilidade e perda de contato com uma identidade mais profunda. Há quem diga que faz parte da natureza humana e sempre foi assim. Pois não é verdade. Esta mente, longe de ser inerentemente humana, em realidade começou a gestar-se há apenas 6.000 anos atrás quando, frente a uma crise de sobrevivênci, certas populações agrícolas arcaicas indo-européias e semitas tiveram que voltar a serem nômades e acabaram convertendo-se em comunidades de guerreiros e predadores.
Essa mente se manifesta nas relações de domínio-submissão e de paternalismo-dependência, que interferem na capacidade de estabelecer vínculos adultos solidários e fraternais. O cérebro patriarcal- racional apela 'a competição, enquanto o feminino apela 'a cooperação."  Claudio Naranjo (tradução Angelica Rente)


Há um padrão comum onde fomos ensinados a valorizar um papel e uma figura "provedora".
Em primeira instância um "chefe de família" (que pode ser um pai, mãe, ou outra pessoa que represente esse papel). Alguém que nos traz conforto e recursos. Alguém em quem depositamos as fichas de fazer por nós o que nós mesmos não nos consideramos capazes e, em alguns outros contextos, nos ensinando que a vida responde bem a quem responde 'as expectativas de um senso comum e por isso somos premiados. E quem não responde bem 'a essas expectativas é excluído, seja com uma punição ou outras atitudes sutis ou enérgicas de exclusão.

Em segunda instância (não necessariamente nesta ordem) a Corporação faz esse papel, nos provendo de benefícios, planos de carreira, meritocracia e "segurança" quando nos adequamos e sobrevivemos bem ao seu sistema, onde somos mais uma vez recompensados pelo atendimento destas (na maioria dos casos chamada de meta) ou somos demitidos e excluídos no caso contrário. A hierarquia e competição são as ferramentas que melhor mantêm o funcionamento dessas estruturas.

Numa terceira instância o Estado assume o papel de "pai de todos" onde apostamos mais uma vez de que ele nos proverá de soluções que nos julgamos incapazes de conseguir e onde ele mesmo assume este papel para que sigamos incapacitados e dependentes. A burocracia é uma das grandes ferramentas para isso.

Numa quarta instância há as instituições financeiras (com sua maior representação como bancos) que tratam seus clientes como "filhos" ou "parceiros" sabendo de nossa predisposição a estar no papel de incapacitação e impotência principalmente quando nosso referencial é a independencia (não precisar de ninguém, fazer tudo sozinho), sucesso (um lugar muito distante que apenas a alguns é permitido chegar) e que o valor se mede por uma quantidade de moedas. Débito é o óleo que faz as correntes de sua estrutura permanecerem lubrificadas.

Numa quinta instância há as religiões que em muitos casos assumem o papel de "pai da sabedoria", onde mais uma vez depositamos nossas expectativas de soluções e respostas (não nos enganemos, espiritualidade também pode ter crachá e metas) numa figura que tem um tom paternal de acolhimento quando achamos que todo o mais nos parece faltar (nossa relação assim com os mestres, pastores, clero, rabinos etc é um dos fatores que gera o binômio idolatria/aversão a uma figura de um "guru" e a deturpação de boas práticas e ensinamentos). Hierarquia, falta de acesso, pouca diversidade de pensamentos e exclusão é o que nutre o funcionamentos dessas estruturas em tom patriarcal.

Todo esse raciocínio para quê?
Para dizer que os problemas são os "chefes de família", as corporações, o Estado, os bancos e religiões?
De forma alguma. Para compartilhar uma investigação muito particular e pessoal de que o fator em comum não é a existência deles (que têm suas funções complexas) mas nossa relação com eles a partir de um sentimento de incapacidade e falta de recursos internos e externos.
E de onde isso vem?
Dessa nossa crença alimentada pelo Patriarcado fundamentada em valores como independência (garantir o seu e não depender dos outros, não compartilhar, reter, acumular , que valor financeiro define e resolve a maioria das questões (nos faz mais aceito, capacitado e pertencedor). E quem não se ajusta a esse modelo está fadado a ser "menos afortunado", fracassado e não sobreviverá (sejam aqueles que não possuem um provedor, um emprego "estável", uma "iluminação", cidadão de "bem" pagador de seus impostos ou honrados clientes que não possuem o nome "sujo").

Onde está o engano de tomar esses referenciais como realidade da vida?
Eles não possuem lastro. Eles duram enquanto são alimentadas suas estruturas de poder.
E a partir do momento em que estamos imersos neste tipo de mente e nos relacionamos com o mundo desta maneira perdemos completamente a noção de quem alimentou o que, de onde isso se origina, de que lugar isso nos fisga e recebe nossa energia de vida.

Nossa potência de criação e materialização é sempre muito maior em conjunto onde o valor de autonomia é mais relevante neste contexto do que uma independência isolada e competitiva. Se nossas relações, sejam quais forem, estiverem pautadas em consumo e uso poco interagiremos. Sem iteração não há lastro, há abstrações, conceitos, especulações assumindo um caráter "virtual" e pouco interdependente, que é realmente como a vida flui, aceitemos isso ou não.
É a interação, o contato para valer que nos conecta uns aos outros, nos transforma, assim como acontecem com as sinapses do nosso cérebro.

Se nos abrimos a uma visão de que podemos confiar no processo da vida com sua interdependência, nos engajamos mais em formas coletivas de realização e distribuição de recursos. Mesmo que o façamos individualmente em alguns momentos o referencial de que o coletivo é muito relevante está ali. Desta forma, exponencializamos a geração de valor, pois potências de muitos seres com autonomia gera benefícios a todos e não a apenas alguns e então podemos caminhar com a compreensão de que de fato todos estamos ligados uns aos outros e assim precisamos uns dos outros para viver.

Todos nós temos capacidades e habilidades e cultivando lastro interno elas podem  florescer e ser oferecidas de maneira mais ampla.
Quem sabe a autonomia de cada um em sua potência, conectada uns aos outros por estarmos numa experiência humana não torne a vida mais potente de ser desfrutada por todos nós?


segunda-feira, 28 de setembro de 2015

O que aprendo com o não perdão


foto: Alessandra Marcuzzi


“O verdadeiro perdão é o não perdão” Lama Padma Samten

E se não precisássemos pedir desculpas e nem perdoar?

Em uma oficina de Comunicação Não- Violenta o facilitador sugere que, após todo um estudo e dinâmica anterior, simulássemos um diálogo entre nós e alguém com quem gostaríamos por alguma questão que estivesse em conflito. Primeiro entraríamos em contato com nossas necessidades diante do que nos incomodou na questão. Depois, em empatia com a necessidade por trás da atitude que nos incomodou. E então um colega faria o papel dessa outra pessoa para que praticássemos o diálogo sob a mediação do facilitador.
Nessa dinâmica, num determinado momento uma colega, na posição do outro com quem seria meu diálogo disse: “tudo o que eu queria era um pedido de desculpas”. Naquele momento um silêncio tomou conta de mim... Como poderia pedir desculpas por algo pelo qual não sentia culpa? Como entrar em empatia, comunicar necessidades sem precisar desse artifício?

A partir do relato do facilitador um universo todo se abriu para mim.
No dia anterior durante a prática de uma colega eu acabei dormindo no sofá e me senti muito mal por isso. Então esse foi um bom exemplo para o caso das desculpas. Queria pedir desculpas mas não parecia essa ser a melhor forma de expressar o que sentia, foi quando ele sugeriu:

“Eu gostaria de ter tido mais presença durante a sua prática, isso é algo importante para mim. Eu estava cansada mentalmente e caí no sono sem perceber, tinha essa necessidade de descansar. Gostaria que você soubesse disso.”

Quando pedimos desculpas, “tiramos a culpa”, supomos que havia uma culpa nossa e com essa palavra mágica isso é retirado. E toda desculpa supõe um perdão para ser validada. O que me ocorre é o quão vazio e automático pode ser este gesto quando ele não representa algo verdadeiro para quem diz. Mas se olharmos para nossas necessidades e para as necessidades do outro e, abraçando nossa vulnerabilidade, conseguirmos expresar de forma autêntica o que aconteceu isso gera uma restauração mais profunda daquela questão que queremos resolver pois nos conectamos em outro nível.

Outro aspecto é que a solução não pode ser mais importante que a pessoa. Aprendi nessa vivência que nem sempre conseguimos atender a necessidade do outro e a nossa ao mesmo tempo e que existe uma necessidade que está acima dessas duas: a necessidade de conexão
Este é o tesouro que está por trás de tudo que queremos resolver com os outros, tudo o que mais queremos, pensemos da mesma forma ou não, tenhamos a mesma necessidade ou não é que a conexão seja mantida. Se desconectamos, não há como solucionar. Se focamos apenas na solução não comunicamos de forma não violenta pois "objetificamos" o outro em favor de um resultado que  nós esperamos. É preciso que a maior importância seja o outro ser com quem queremos restabelecer essa conexão e não a solução do conflito apenas.

E que é possível relaxar quando não é possível que as necessidades se encontrem e que isso não precisa ser um problema. Por exemplo: não importa se alguém não quer contato com você, se te ignora na rua, se te agrediu em palavras, se te julgou.
Havendo entendimento de que essas atitudes podem significar uma preservação, necessidade de silêncio, de espaço etc… havendo empatia não há espaço para ressentimento. A aceitação da necessidade do outro e a paz com a nossa necessidade já são em si um “perdão” muito mais profundo e mais consistente. Dessa forma ele não terá como base as expectativas, apenas o profundo respeito de cada um. Quando acolhidas suas próprias necessidades e a do outro é gerada e mantida a conexão, mesmo que a distância e o não contato pessoal permaneçam.


quinta-feira, 2 de abril de 2015

Cinderela


O conto de Cinderela sempre me interessou e me tocou principalmente pelas qualidades e desafios da personagem.  
A versão da Disney que está em cartaz me encantou por sua leitura muito próxima de como vejo essa história.

Ella é uma garota que nasceu em condições muito favoráveis: sob a criação de uma mãe dedicada, amorosa e que nutria o olhar muito especial para o "invisível" da vida em si e para a filha e um pai que, apesar de viajar muito, não era menos atencioso e carinhoso. Apesar das referências ao machismo que muitos referem a esse conto, Cinderela é para mim uma história tipicamente sobre o feminino em suas diversas formas: a humana (Ella), a divina (fada madrinha) e a sombria (madrasta). Esse tripé está presente em todos nós, seja integrado ou fragmentado, mas no conto em especial ele tange o Universo feminino na relação entre esses personagens e esses simbolismos.

A vida de Ella passa a se transformar com a morte da mãe e a chegada da nova esposa do pai, que se mostra com certa fraqueza diante do imperativo da madrasta sem notar sutilezas importantes no ambiente do lar. Com a morte dele, Ella se reinventa para adaptar-se mas acaba como uma serviçal de sua madrasta e irmãs. Para isso, muitas vezes segue numa resignação cômoda e dependente que a fragiliza e outras, fazendo o que precisa ser feito com o intento de honrar uma tradição familiar e seguir  a sabedoria da mãe de que não importa o que lhe acontecesse ela conseguiria passar por tudo se mantivesse "coragem e gentileza". Aos olhos mais céticos pode parecer muito piegas, mas se olharmos mais profundamente percebemos que esses valores que a norteiam não são pouca coisa para se praticar e que realmente a colocam em posturas íntegras diante das circunstâncias. 
Acontece um interessante paradoxo: enquanto ela mesma se coloca em situações que vão abafando todo esse potencial interno que existe não se dá conta do que aquilo está fazendo com sua vida e seu entorno. Ao mesmo tempo esse potencial que se mantém "cristalino" (como o sapatinho) apesar das circunstâncias quando não expressado com integridade a leva a uma vida reduzida a sobreviver e barganhar.

O que ocorre com Ella no meio do caminho é que seu olhar transcendente diante da vida realmente continua trazendo um sentido muito mágico 'a ela. Mas sua acomodação e falta de empoderamento diante de alguns grandes desafios, quando passam dos limites a tornam alguém com as potencialidades tão pouco aterradas e reveladas que a reduzem a uma situação maltrapilha. Tanto que o apelido Cinderela dado pelas irmãs é por viver perto das cinzas de tal modo que está sempre suja delas. E é a própria Ella que escolhe assim viver, primeiro num sótão, depois perto das cinzas, no chão da cozinha em busca de algum calor. Ella nem nota que já está passando dos limites de se colocar em um lugar tão pequeno na vida e o quanto, mesmo com essa visão especial que segue nutrindo, está cega numa repetição de tarefas que a fazem girar em círculos.

Apesar de tudo Ella nunca ficou esperando um príncipe encantado nem alguém que a salvasse mas pouco fez até aquele momento com propriedade para sair da situação de submissão (muitas vezes sob o verniz de bondade) que não fazia bem a ninguém, principalmente a ela mesma. Quanto mais fazia todas as tarefas menos espaço deixava para que a própria madrasta e irmãs pudessem ocupar melhor seu tempo do que com futilidades, por exemplo. Não que Ella não fosse realmente boa, ela guardava em si essa pureza de valores e bondade genuína, mas que sob uma postura de submissão e resignação além dos limites para com ela mesma a colocavam num lugar de indignidade e não de humildade.

Então o primeiro sinal de algum empoderamento acontece quando corre com o cavalo sem sela, selvagem, para a floresta em busca de um respiro para a situação opressora em que se encontra. Nesse passeio ajuda a salvar um cervo e é aí que cruza com Kit (que se recusa a se apresentar como príncipe) e ela se encanta com o "aprendiz" que acaba de conhecer, não pela visão romantizada mas como alguém que a tocou pela troca que tiveram (além de tudo ele promete não matar o cervo, o que significa muito para ela).

Ella começa a engatinhar rumo a uma transgressão quando a madrasta nega um vestido para o baile. Ingenuamente acreditando que vai conseguir ir com seu consentimento (mais uma cegueira), conta com a ajuda dos ratinhos que a acompanham desde a infância (que chama de seus ínicos amigos) para costurar um vestido para si. O limite acontece quando a madrasta não só não permite que ela vá ao baile como rasga partes dos vestido que era de sua mãe.
Nesse momento ela se revolta, sente raiva, se entristece e surge a fada madrinha que de elementos simples do dia a dia de Ella faz possível seu sonho se materializar. 
Note-se o quão simbólico e profundo é quando ela pede para a fada madrinha que não destrua o vestido da mãe, mas apenas o "transforme". Ella honra a preciosa e inspiradora figura da mãe que representa valores muito importantes ao passo que se empodera sem precisar abandoná-los. Ella transgride integrando valores primordiais que lhe são muito caros com essa mulher/princesa ciente de seu poder que está prestes a se tornar.
A fada madrinha é o veículo da potencialidade da imaginação criadora e a mentora que guia Ella para a vida adulta, para a mulher com as rédeas de seu destino.
Dessa forma chega ao baile apropriada de seu poder pessoal, sem perder sua inocência mas agora uma mulher decidida a cumprir o que se propõe. Ela dança e se relaciona não com o príncipe apenas, mas com o aprendiz que tem valor humano para ela e por isso o fascina e atrai. 

Desde o começo Cinderela sabe que terá pouco tempo de desfrutar do "sonho" e de forma alguma se sente frustrada ou ansiosa por isso. Ela vive cada momento daquela noite consciente de sua fugacidade, até mesmo considerando o tempo de "até meia noite" como "bastante tempo". Essa compreensão guarda a maturidade dessa Ella que surge: desfrutar a mágica sabendo que ela não dura para sempre e que tentar prolongá-la a levaria a situação maltrapilha novamente. Nessa aceitação é possível uma interação digna e íntegra com o príncipe. Ao escapar, deixa cair seu sapatinho de cristal, que simboliza o lugar que lhe pertence e ninguém pode tirar. Isso de certa forma a conforta internamente quando trancada no sótão pela madrasta para que o príncipe não a encontre com o sapatinho perdido: que viveu verdadeira mente aquela noite  e que o que foi vivido ninguém pode lhe tirar. Por honrar  sua vida ela não teme o futuro mas prossegue em seus valores que são expressados através do canto pela janela que, com a ajuda dos seres que com ela estão conectados, a fazem ser encontrada pelo príncipe. Outra boa característica dessa história: a colaboração de todos é que faz (também) a mágica dos sonhos possível.

E no fim das contas por Kit saber apreciar a princesa poderosa e a camponesa que fazem parte dela, Cinderela aceita se casar com ele.

A história de Cinderela representa o empoderamento pessoal com valores profundos integrados, e é isso que torna capaz o encantamento e mágica sempre possíveis no mistério da vida. Ao passo que apenas ter valores profundos sem colocá-los de fato a serviço de algo com consciência de si, seus limites e aspirações, por si só não levam a um caminho maior, mas apenas 'a sobrevivência. Da mesma forma que agir sem valores leva a uma sobrevivência vazia de sentido.
Cinderela simboliza essa união da mágica com a ação, da conduta de vida alinhada com atitudes, da apropriação do poder pessoal como algo que não serve ao poder no sentido de dominar ou estar acima, mas ao poder como potência de transformação da nossa vida e do nosso entorno (não seria essa a grande mágica do viver?). E que é necessário que nos apropriemos de nossos príncipes e princesas não como um status quo mas como um potencial que tem muito a oferecer sem esquecer das raízes do" não saber" do aprendiz e da simplicidade da camponesa.

Por acreditar em contos de fadas e fadas madrinhas como absolutamente "reais", essa história me comove.

Até por que, quem seria eu para duvidar? ;-)

segunda-feira, 13 de outubro de 2014

Para não dizer que não falei das flores (ou os nossos centavos de cada dia)


Foto: Alessandra Marcuzzi

"Um psicanalista francês, André Green disse certa vez que a resposta é a infelicidade da pergunta. Resposta não é uma coisa importante. Seja na história, na vida de cada um de nós. Quando a resposta chega o assunto já está resolvido. Pergunta é diferente: ela modifica, instiga, transforma." Sérgio Besserman Vianna

Desde a mesa de um bar 'as redes sociais temos cada vez mais necessidade de ter opinião sobre tudo, de tomar partido, de classificar o que é correto e errado, de dar palpite sobre o que nos é estranho ou o "assunto da vez". No entanto não percebemos o quão intolerante podemos ser em nossas palavras e posturas diante do que se apresenta de uma maneira diferente da nossa. Um amigo disse algo que me tocou: "Estamos tão preocupados em ser bem resolvidos que nos esquecemos de ser delicados com as diferenças"
Nossos posicionamentos pretensiosos nos  colocam em um lugar de esteriótipos ao invés de humanos. Na vida real o ser humano é complexo, não como algo difícil de se enteder, mas por ser muito amplo e cheio de conexões possíveis. E o que me parece quando nos manifestamos desta maneira é que nos reduzimos a algo que nos tira essa (bela) humaninade a serviço de alguma aprovação, aceitação superficial, atenção a qualquer custo e perdemos toda riqueza de tantas outras possibilidades para além dessa visão estreita.
Manifestações coletivas sejam em torno do esporte, da política ou o que quer que seja, demonstram claramente um desejo social de estar junto. Vamos 'as ruas para uma passeata, para um jogo de futebol no estádio, para um show, compartilhamos opiniões, pensamentos e sentimentos nas mídias sociais... O coletivo naquele momento tem um significado, uma importância, uma força. As grandes transformações acontecem nos encontros e é isso que acredito que a maioria de nós busca em essência ao aderir a esses eventos. Queremos sentir que há empatia pelas coisas que nos são mais caras, queremos fazer parte, queremos buscar soluções em parcerias, queremos nos expressar, queremos ser ouvidos... 
No entanto, sinto também que não sabemos bem o que fazer com o que resulta do formato em que acabamos por expressar esse desejo e por isso nos perdemos. Há o momento do grito mas é necessário um momento de silêncio individual para processar o barulho e ver o que fazer com ele. Após gritarmos algo engasgado acredito que precisemos direcionar a angústia da interrogação para algo produtivo.
Particularmente não tenho interesse por discursos inflamados que como fogo em palha logo se dissolvem. Há algum tempo desenvolvi um hábito de manter um certo ceticismo ao redor em assuntos coletivos, como um amante disponível caso me apaixone por alguma espécie de idéia e ele, no mínimo, me mostra outros ângulos de uma mesma questão. Interessantes são as nuances e não me faz muito sentido as polaridades baseadas em antagonismo raso. O que fazer a partir do revelado me interessa, o sentido me interessa.
Cada vez que antagonizamos aquilo que era o objeto "contra" ele dá lugar ao objeto "a favor", sendo que ambos dependem de inúmeras circunstâncias e contextos. Mas simplificando dessa forma maniqueísta mais habitual e mais fácil de aderir como de digerir, o que vemos é uma mudança de lugares, quando o que realmente faz uma diferença consistente é a transformação.
O que seria a transformação? Pegar o que não agrega e devolver com algo que agregue. A transformação exige apoderar-se de uma responsabilidade que é só nossa, exige fazer nosso trabalho individual que é muito silencioso, por mais barulho que possamos fazer a respeito. A transformação  faz conviver com as perguntas e não apenas buscar respostas freneticamente. Mudança faz apenas sair de um lugar e ir a outro.
A mesma lógica dos esportes competitivos segue em nossas vidas de maneira geral: se "ganhamos" (fizemos "certo", atendemos expectativas nossas e dos outros) está tudo certo e nada a se pensar, apenas desejar mais, qual a próxima meta? Se "perdemos" seguem mil justificativas para a frustração, dramas e filosofias rasas (nos comparamos com resultados passados de nossas vidas e com o "oponente" para nos consolar ou nos mostrar que somos afinais melhores que a "derrota", procuramos culpados, procuramos um salvador ou qualquer coisa que nos tire do desconforto...)

Fazendo nossa parte com nossa própria vida, não tenho dúvidas de que o coletivo naturalmente se beneficie e de que podemos estar mais inteiros a cada momento juntos, coletivamente. Duvide de você mesmo e duvide do que lê e ouve. Não como um desacreditado, mas como um observador saudável que busca a amplitude e não o estreitamento. Não como um chato questionador, mas um questionador buscador: aquele que está constantemente em jornada e, portanto, entende que o que se apresenta diante  dos nossos olhos sempre depende da visão para ele.


O que me ensinaram nunca me deu mais calor nem mais frio,

O que me disseram que havia nunca me alterou a forma de uma coisa.

O que me aprenderam a ver nunca tocou nos meus olhos.

O que me apontaram nunca estava ali: estava ali só o que ali estava.



Alberto Caeiro,

domingo, 10 de agosto de 2014

Sobre (e para) meu pai




Meu pai.
E eu.
Houve um (longo) tempo em que nossas diferenças eram mais reforçadas do que nossas conexões
Um tempo de conflitos inflamados, inflamantes
Eu me achava muito diferente dele, e me sentia inadequada
Ele não achava que eu "tinha puxado a ele" e sentia estranhamento
De certa forma fomos beneficiados por isso conforme amadurecemos, pois acabamos seguindo por uma via muito interessante: um coleguismo que floresceu amizade. 
Como pessoas que convivem de tempos e tempos e vão se conhecendo, meio que por curiosidade, meio  porque vão conviver de qualquer maneira...
A ironia feliz é que acabamos descobrindo nas coisas que mais nos importam na vida as semelhanças não de personalidade, mas de caminhar.

Ele é dessas pessoas interessantes que sabem sorrir diante do que não entendem ou conhecem.
Ele é dessas pessoas que sabe sorrir, sorrir muito, sorrir bem.
Disso surge uma cumplicidade muito implícita nossa, que precisa de poucas palavras e mais presença para se manifestar.
Ele me surpreende muito com suas reações diante de coisas que talvez ele não entenda sobre mim.
Ou que talvez ele entenda melhor do que eu mesma que achava que ele não entendesse... 

Uma outra vez no Natal, estávamos assistindo a um filme sobre Jesus Cristo na TV
Ele gosta muito de contar histórias sobre a Bíblia
Eu gosto muito de ouvi-las
Então perguntei sobre uma história que estava passando no filme, queria entender melhor o sentido
Ele me explicou, eu me emocionei.
E compartilhei algo parecido que havia ouvido no Budismo
(ele sorriu um sorriso de quem dividiu algo precioso e entende que também era precioso para mim)

Há uns dois anos ele estava internado no hospital após ter um AVC.
Sua vulnerabilidade me comovia profundamente, principalmente por imaginar que ele como pai, homem, pessoa, sofria muito nessa posição...
Ele estava na maca para um exame sorrindo um sorriso que queria esconder sua preocupação e eu tentando disfraçar a minha tensão com um bom humor nervoso... 
Ele então saiu da sala de exame muito bem e eu relaxei.
Percebi que tinha um tubinho de plástico perto do quadril e perguntei, fazendo graça:
-       Pai, eles enfiaram isso aí no seu... ? (fazendo um assovio e um gesto com o dedo)
-       Não filha, é o soro! hahahahaha
(ele chorou de tanto rir)

Então ele mudou de hospital e eu estava lá com ele em silêncio no quarto (coisa que costuma acontecer quando estamos só nós dois juntos) e chegou uma visita que eu não conhecia.
Ele orgulhoso me apresentou como sua filha primogênita (ele adora usar esssa palavra)
-       Ah então essa é sua filha casada?
-       Não, é a outra mas essa também já foi.
-       (o homem olha pra mim um pouco espantado) Mesmo? Tão novinha? E não quis casar de novo por que?
 Meu pai se adiantou:
-       Não sei... Ela não casou de novo mas eu não me preocupo com isso. Parece que alguma coisa está dando muito certo para ela, pois está sempre bem. 
(ele sorriu olhando para mim, um sorriso de "tamo junto")

Ali, de uma forma mais profunda nossa cumplicidade ficou sutilmente muito clara
Fiquei tão feliz nesse dia e não sei porque nunca disse isso a ele
Mas suspeito que inventei esse texto só para isso.

Ele fica feliz quando todas as filhas estão em harmonia
Ele fica muito feliz com as famílias reunidas
Ele não entende como eu faço tantas coisas sem perguntar para ele
Ele gostaria que eu perguntasse mais 
Eu tô aprendendo.
Ele fica feliz comendo uma fruta que lembra sua infância
Eu também. 
Ele fica contente com coisas simples. Ele gosta de fazer as pessoas rirem. 
Eu também.
Ele tem fascínio por espiritualidade e se alegra contando situações em que isso se demonstra em sua vida
Eu também.
Ele nunca pede satisfação para mim, mas liga para perguntar onde estou e se estou bem 
Ele liga para dizer que tem saudade
Ele liga para dizer que está indo viajar e quando volta
Eu ligo para dizer que tenho saudade e saber se ele está bem
Eu digo a ele o que se passa no meu coração
Eu aprendi.
Eu digo o que me faz sentido na vida ou as coisas mais bonitas que tenho experienciado
Ele se sente a vontade e diz coisas que me fazem esquecer que ele é meu pai
Então ele me abraça com um sorriso e uma piada

E eu me lembro que tive a sorte de ele ser também

Meu pai.






quarta-feira, 9 de julho de 2014

Sobre a escuta (ou o que aprendo escutando)


                                                                     Foto: Alessandra Marcuzzi

"Como ouvintes, não precisamos de insights sobre dinâmica psicológica ou treinamento em psicoterapia. O que é essencial é nossa capacidade de estarmos presentes em relação ao que realmente está acontecendo dentro da outra pessoa - em relação aos sentimentos únicos que uma pessoa está vivendo naquele mesmo instante." Marshall Rosemberg


O que é a escuta? Além do ato de escutar?

A escuta é como um abraço silencioso, onde é ofecerida uma presença. Ela é firme, a respiração mansa, como se tivesse todo o tempo do mundo... E quando a praticamos sentimos essa verdade: temos todo o tempo do mundo, somos donos do nosso tempo.
A presença firme vem de uma vivacidade de simplesmente estar ali. Temos energia, a postura é ereta, os olhos abertos, sem bocejos...
Numa real necessidade de comentar o que está se escutando, a fala vem de um lugar de abertura e atenção e é naturalmente mais assertiva e objetiva sem por isso ser fria ou sem emoção.
Ela pode sugerir, mas não interfere nem corta.
Os impulsos de interferência, como aconselhar, contar uma experiência própria, adiantar um pensamento do outro acontecem quando estamos em nossos próprios filmes de passado ou de futuro sobre o que está sendo dito.

O processo da escuta dispensa preparos, receitas. Ele é simples e sutil.


A escuta genuína nos coloca no momento presente, e consequentemente, na realidade do que está sendo expressado. Dessa forma, muitas vezes pode parecer impessoal, pois crua, no sentido de nenhum artifício.
Porém, poucas coisas são mais íntimas do que escutar profundamente. E a escuta é imensa, ela abrange ouvir a nós mesmos, ouvir nosso corpo, ouvir o outro, ouvir seu corpo. Ouvir inteiro, tudo. 
E 'as vezes confundimos escutar com elocubrações, suposições, quando não confundimos nossas próprias emoções com julgamentos, manipulações.
Ouvir um outro é possível quando nos habituamos a nos ouvir. Assim conhecemos nossas necessidades mais a fundo, e passamos a discernir entre elas e uma emoção. E o que a emoção nos traz de notícias, não para  nos perdermos em pensamentos, para que a partir da nossa própria compreensão conosco, a habilidade de compreender uma outra pessoa de maneira integral floresça.

Havendo disponibilidade interna e interesse autêntico pelo ser que compartilha, a conexão acontece naturalmente. Pois naquele instante o que é escutado não são as palavras, é a expressão de um universo inteiro. E então a empatia acontece e cuida do fluxo, de forma leve independentemente do conteúdo ou formato da fala. 


Entre a escuta, a fala e a ação existe um campo imenso. 
É lá que muitas possibilidades nos convidam para dançar. 
E onde boas sementes se tornam perfume acessível 'a todos.




terça-feira, 11 de março de 2014

O dia que mudou a minha vida (ou na dúvida, lave a louça)



Era algum dia de novembro. Semanas de preocupação e especialmente naquele dia uma tristeza dessas que não têm o sabor amargo da depressão mas aquele azedo doce de algo que não está bem mas  ainda assim conseguimos sorrir para o gato na sala ou diante de uma flor no vaso...

No pico de uma angústia, coloquei a bolsa em cima da mesa de jantar e sentei no sofá.

Tinha um chinelo no chão, resolvi colocá-lo em seu lugar no quarto. A cama estava desarrumada, comecei a pegar peça a peça de roupa que estava em cima dela e pendurei nos cabides e guardei nas gavetas. Notei em cima da cabeceira algumas contas a pagar espalhadas, juntei todas e levei para a mesa do escritório onde um prato com garfo e faca repousavam. Parei. Os restos de comida estavam duros e aderidos aos talheres, o prato tinha cores de algo que ficou para trás, algo ali deixado com um certo descuidado ou alguma distração. Ou esquecimento. Um prato sem importância abandonado em cima de uma mesa onde não deveria estar, deslocado, desconectado e de repente alvo de toda atenção.

Peguei o prato e levei até a pia da cozinha, onde para minha surpresa estava acontecendo um congresso de coisas que ficaram para trás falando em voz alta. Talheres, panelas, copo de liquidificador, cumbucas, copos... Estavam todos lá 'a espera da chegada da faxineira. Da faxineira? Por que esperar por ela? Por que delegar a ela só porque ela é "paga" para a tarefa? Por que deixar para trás se eu mesma poderia fazer aquilo se não fosse a preguiça ou porque tem alguém para fazê-lo?
Lavei a louça uma a uma. Em alguns momentos com nojinho dos restos de comida grudados e preguiça  diante de sujeiras que exigiam mais que apenas circular a bucha com sabão... Outros aproveitando o frescor da água, a "bagunça" que a água faz e que chegava a lembrar os banhos de esguicho da infância... Aos poucos toda louça estava lavada e ao colocar para escorrer em cima da bancada notei que podia organizar melhor todas aquelas coisas, um bom espaço na cozinha seria bem vindo. Reorganizei os ármarios para que tudo coubesse e em alguns bons minutos a bancada estava mais livre, com mais espaço para as atividades do dia-a-dia.
Fui arrumar o tapete que fica em frente a pia e notei que o chão estava bem cheio de poeira. Varri em direção 'a sala e percebi que a sala também estava cheia de poeira. Varri a cozinha e a sala e percebi que o sofá estava todo bagunçado, com suas almofadas e uma manta.

Arrumei o sofá e sentei.

Respirei sentindo uma leveza e resolvi meditar. Não sei por quanto tempo meditei, levantei e senti vontade de acender insenso e velas como se uma visita estivesse para chegar.
Peguei um cacho de uvas na geladeira, deitei no sofá e assisti um seriado.

Fui para o quarto e a cama arrumada fazia um convite irresisitível...

Adormeci.


quarta-feira, 19 de fevereiro de 2014

Justiceiros acorrentados num poste, todo mundo que a gente conhece e Clarice Lispector

Dali e o Rinoceronte



Recomendo ler em voz alta:


" (...) Esta é a lei. Mas há alguma coisa que, se me faz ouvir o primeiro e o segundo tiro com um alívio de segurança, no terceiro me deixa alerta, no quarto desassossegada, o quinto e o sexto me cobrem de vergonha, o sétimo e o oitavo eu ouço com o coração batendo de horror, no nono e no décimo minha boca está trêmula, no décimo primeiro digo em espanto o nome de Deus, no décimo segundo chamo meu irmão. O décimo terceiro tiro me assassina — porque eu sou o outro. Porque eu quero ser o outro.

Essa justiça que vela meu sono, eu a repudio, humilhada por precisar dela. Enquanto isso durmo e falsamente me salvo. Nós, os sonsos essenciais.

Para que minha casa funcione, exijo de mim como primeiro dever que eu seja sonsa, que eu não exerça a minha revolta e o meu amor, guardados. Se eu não for sonsa, minha casa estremece. Eu devo ter esquecido que embaixo da casa está o terreno, o chão onde nova casa poderia ser erguida. Enquanto isso dormimos e falsamente nos salvamos.

(...)

Tudo o que nele foi violência é em nós furtivo, e um evita o olhar do outro para não corrermos o risco de nos entendermos. Para que a casa não estre­meça.

A violência rebentada em Mineirinho que só outra mão de homem, a mão da esperança, pousando sobre sua cabeça aturdida e doente, poderia aplacar e fazer com que seus olhos surpreendidos se erguessem e enfim se enchessem de lágrimas. Só depois que um homem é encontrado inerte no chão, sem o gorro e sem os sapatos, vejo que esqueci de lhe ter dito: também eu.

Eu não quero esta casa. Quero uma justiça que tivesse dado chance a uma coisa pura e cheia de desamparo em Mineirinho — essa coisa que move montanhas e é a mesma que o fez gostar “feito doido” de uma mulher, e a mesma que o levou a passar por porta tão estreita que dilacera a nudez; é uma coisa que em nós é tão intensa e límpida como uma grama perigosa de radium, essa coisa é um grão de vida que se for pisado se transforma em algo ameaçador — em amor pisado; essa coisa, que em Mineirinho se tornou punhal, é a mesma que em mim faz com que eu dê água a outro homem, não porque eu tenha água, mas porque, também eu, sei o que é sede; e também eu, que não me perdi, experimentei a perdição.

A justiça prévia, essa não me envergonharia. Já era tempo de, com ironia ou não, sermos mais divinos; se adivinhamos o que seria a bondade de Deus é porque adivinhamos em nós a bondade, aquela que vê o homem antes de ele ser um doente do crime. Continuo, porém, espe­rando que Deus seja o pai, quando sei que um homem pode ser o pai de outro homem.

E continuo a morar na casa fraca. Essa casa, cuja porta protetora eu tranco tão bem, essa casa não resistirá à primeira ventania que fará voar pelos ares uma porta tran­cada. Mas ela está de pé, e Mineirinho viveu por mim a raiva, enquanto eu tive calma.

Foi fuzilado na sua força desorientada, enquanto um deus fabricado no último instante abençoa às pressas a minha maldade organizada e a minha justiça estupidificada: o que sustenta as paredes de minha casa é a certeza de que sempre me justificarei, meus amigos não me justificarão, mas meus inimigos que são os meus cúmplices, esses me cumprimentarão; o que me sustenta é saber que sempre fabricarei um deus à imagem do que eu precisar para dormir tranqüila e que outros furtivamente fingirão que estamos todos certos e que nada há a fazer.

Tudo isso, sim, pois somos os sonsos essenciais, baluartes de alguma coisa. E sobretudo procurar não entender.

Porque quem entende desorganiza. Há alguma coisa em nós que desorganizaria tudo — uma coisa que entende. Essa coisa que fica muda diante do homem sem o gorro e sem os sapatos, e para tê-los ele roubou e matou; e fica muda diante do São Jorge de ouro e diamantes. Essa alguma coisa muito séria em mim fica ainda mais séria diante do homem metralhado. Essa alguma coisa é o assassino em mim? Não, é desespero em nós. Feito doidos, nós o conhecemos, a esse homem morto onde a grama de radium se incendiara. Mas só feito doidos, e não como sonsos, o conhecemos. É como doido que entro pela vida que tantas vezes não tem porta, e como doido compreendo o que é perigoso compreender, e só como doido é que sinto o amor profundo, aquele que se confirma quando vejo que o radium se irradiará de qualquer modo, se não for pela confiança, pela esperança e pelo amor, então miseravelmente pela doente coragem de destruição. Se eu não fosse doido, eu seria oitocentos policiais com oitocentas metralhadoras, e esta seria a minha honorabilidade.

Até que viesse uma justiça um pouco mais doida. Uma que levasse em conta que todos temos que falar por um homem que se desesperou porque neste a fala humana já falhou, ele já é tão mudo que só o bruto grito desarticulado serve de sinalização.

Uma justiça prévia que se lembrasse de que nossa grande luta é a do medo, e que um homem que mata muito é porque teve muito medo. Sobretudo uma justiça que se olhasse a si própria, e que visse que nós todos, lama viva, somos escuros, e por isso nem mesmo a maldade de um homem pode ser entregue à maldade de outro homem: para que este não possa cometer livre e aprovadamente um crime de fuzilamento.

Uma justiça que não se esqueça de que nós todos somos perigosos, e que na hora em que o justiceiro mata, ele não está mais nos protegendo nem querendo eliminar um criminoso, ele está cometendo o seu crime particular, um longamente guardado. Na hora de matar um criminoso – nesse instante está sendo morto um inocente. Não, não é que eu queira o sublime, nem as coisas que foram se tornando as palavras que me fazem dormir tranqüila, mistura de perdão, de caridade vaga, nós que nos refugiamos no abstrato.


O que eu quero é muito mais áspero e mais difícil: quero o terreno."

Mineirinho por Clarice Lispector




Fonte: Geledés Instituto da Mulher Negra