terça-feira, 3 de dezembro de 2013

Tio Zé



Não sabia muito sobre meu tio, apesar de ter convivido bastante com ele, mas vinha acompanhando admirada a união dos irmãos com viagens incansáveis para o tratamento numa mobilização solidária de encher o peito de alegria. Há pouco meu pai havia viajado com ele ao local onde nasceram e na sequência organizou seu próprio aniversário com máximo da família presente. Naquele domingo que antecedeu, estavam os irmãos em volta dele no hospital fazendo orações e dando suporte.

Num dia comum ele se foi.

E lá estava eu hoje no velório. Um dia comum. Daqueles que podia estar frio mas fazia muito sol.
E lá estava eu, que evito velórios pois não gosto de ver o corpo. Mas meu pai estava muito triste, o tio havia partido, tudo fazia sentido. Peguei a estrada, subi as escadas e lá estava meu pai. Me sentei ao lado dele, num abraço diferente. Abraços que apenas se abraçam...
Logo aconteceram as velhas piadas e suposições do que gostaríamos que acontecesse quando chegasse nosso momento... Meu pai quer festa, assim como eu. Eu disse que disso eu cuidaria, se eu não fosse antes. Eu quero ser cremada e queria que tivesse música.

Silenciamos. 

Chegaram dois senhores desconhecidos para mim, o suficiente para que meu pai chorasse como uma criança. "Eles são da Associação onde seu tio era presidente, a Associação dos Alcoólicos daqui."
Naquele momento foi como o mundo tivesse parado. Ali era o dia em que, ironicamente, iria conhecer meu tio. Meu pai disse que ele nunca faltou a uma reunião dessa Associação, se dedicando com todas as forças para aquilo, desde que tinha sido curado do alcoolismo, com a ajuda daquele grupo. Que forma de gratidão tão digna...
Logo chegaram mais amigos da Associação, um deles dizendo o quanto o Tio Zé era importante, que eles só preceberam o tamanho dessa importância quando ele teve que se afastar pela doença. Ele confessou (com lágrimas nos olhos) estar culpado por ter deixado ele trabalhar tanto, mas era tamanha a dedicação do Tio Zé, que só percebeu a real dimensão do esforço depois que ele teve de se ausentar. Este senhor pediu autorização ao meu pai para colocar uma bandeira sobre o caixão na hora do enterro, uma bandeira de homenagem ao trabalho na Associação e por ele ter morrido em sobriedade... 

Do que é feita a vida de uma pessoa? Não estava comovida por não haver mais respiração naquele corpo. No céu as nuvens seguiam com o vento. O céu estava muito azul. A respiração ainda seguia, não mais naquele corpo, mas em cada um que chegava. Ali estava claro, que a vida de uma pessoa não é dela, é de todos que a tocam, fazem parte, caminham juntos. A vida do meu tio era uma coisa imensa. Era feita de muitas respirações juntas, de muitos batimentos cardíacos que não se vê em um eletrocardiograma. De sangue que circula além de veias e artérias. 

Ali pulsava um organismo inteiro que não morreria. Nas lágrimas do neto que pela primeira vez viu alguém morto e era o seu avô mais querido. Na anestesia da esposa que não sabia bem o que estava acontecendo. Nos que não hesitaram percorrer longas distâncias para estar ali. Nos irmãos que não mediram esforços em cuidados. Na vulnerabilidade do choro rendido dos adultos. No apoio e nos abraços entre desconhecidos. Em cada voz que fazia uma oração. Em cada sorriso de lembrança. 

As lágrimas diante de tamanha beleza não puderam ser contidas.
Ali pulsava uma vida inteira que não morre.



terça-feira, 22 de outubro de 2013

Sobre meninas e mulheres

Pintura de Marc Chagall


Meninas pensam no que o outro está pensando
Mulheres cuidam do seu desejo

Meninas só querem receber 
Mulheres têm prazer em trocar

Meninas competem, por vaidade
Mulheres compartilham, sem pretensão 

Meninas não se importam
Mulheres cuidam

Meninas sonham com projetos de vida
Mulheres buscam a vida com sentido

Meninas demonstram fragilidade para manipular
Mulheres sabem que a força está na vulnerabilidade

Meninas procuram qualquer coisa que as salve
Mulheres vivem suas histórias

Meninas querem controlar para não ter erro
Mulheres se entregam

Meninas dizem não como birra
Mulheres dizem não com propriedade

Meninas dizem sim para agradar
Mulheres dizem sim para experienciar

Meninas querem chamar a atenção
Mulheres sabem quem são

Meninas querem um corpo perfeito
Mulheres exalam feminilidade 

Meninas querem diversão para contar
Mulheres não se levam a sério

Meninas insistem para não ficarem sozinhas
Mulheres abrem mão do que não faz sentido

Há de ter uma menina que brinca na mulher
E mulher na brincadeira da menina

O homem olha os encantos da menina
Mas segue conectado com a mulher que o fascina.

quarta-feira, 9 de outubro de 2013

Sobre meninos e homens





Meninos passam o tempo como quem tem a eternidade pela frente
Homens passam do tempo como quem tem todo o presente

Meninos acariciam, sem saber o que podem oferecer
Homens envolvem, com tudo que sabem capazes de dar

Meninos jogam, confusos sobre o que querem
Homens posicionam, certos de sua direção

Meninos são descompromissados, como se significasse uma vida leve
Homens são leveza, comprometendo sem ser prisão

Meninos pegam pela mão, rapidinho para levar aqui e ali
Homens pegam pela cintura, sem pressa de levar aonde realmente desejam

Meninos procuram encantamento, fogos de artifício ou qualquer coisa que os tirem do tédio
Homens desbravam mistérios, simplesmente por lhes fazer sentido

Meninos se empolgam por impulsos de momentos
Homens se fascinam por consistências de histórias

Meninos querem atalhos, para chegar mais rápido
Homens querem caminhos, para percorrer

Meninos não dizem não, sem critérios
Homens dizem sim, com valores

Meninos insistem para possuir o que querem
Homens rendem para fluir o que sentem

Meninos vaidade, o que se mostra é o que é
Homens confiança, o que é pode ficar em silêncio

Meninos resistem, com medo de não saber o que fazer
Homens se entregam, pois sabem improvisar

Meninos desaparecem, para sinalizar que não querem mais
Homens vão embora, depois de dizer que acabou.

Há de ter menino no homem,
E homem no horizonte do menino

A mulher olha com ternura e sabe que meninos são apenas meninos
Mas não quer escapar dos braços de um homem.

terça-feira, 24 de setembro de 2013

Silêncio de domingo


Foto Sheylli Caleffi 

Eu quero o silêncio de domingo

O silêncio inevitável que, depois de seis, não há mais nada a fazer
O domingo liberdade
O domingo posso amanhecer tarde

O domingo despertar
O domingo tenho tempo
O domingo tudo fechado

Domingo de manhã é slow motion
Compilação quadro a quadro
Domingo 'a tarde não há espaço para carência
Quando poderia-se não estar fazendo qualquer outra coisa
Domingo 'a noite pode ser uma ressaca
Da programação da TV ou da sua própria vida?

O que fazer quando tudo pára?

O domingo autoriza um espaço
Um hiato
Um descanso

E com ele o silêncio

De domingo.

quinta-feira, 25 de julho de 2013

Um homem

Enamorados - Vincent Van Gogh

Um homem.

Um homem que me vê
Um homem que eu vejo

Um homem que oferece a mão
Um homem a quem eu dou a mão
Um homem que caminha junto
Um homem com quem caminho junto
Sorriso no sorriso
Abraço na lágrima
Introspeção
Celebração
Risada
Silêncio
Um homem que caminha junto
Um homem que vê o tropeço
Caio no chão
Machuco o joelho
Limpo o ferimento
Olho para ele assustustada
Ele oferece a mão
Levanto sorrindo
Ele dá a mão
Sorri
Continuamos a caminhar
Um homem que caminha junto
Eu vejo o tropeço
Ele cai
Machuca o joelho
Tenta guardar a dor
Eu coloco uma mão no joelho
Outra nas costas
Ele levanta
Dou um abraço
Damos as mãos
E continuamos a caminhar
Assim seja
que amor apenas seja
a equação de duas vulnerabilidades imperfeitas
que em transformação al química

simples mente

trans bordem.

quarta-feira, 19 de junho de 2013

A importância da mente não tem textura




Eu não me importo se você torce para o Corinthians
Se você fuma, bebe
Se você come carne ou é vegetariano
Se você não gosta de Tarantino
Se você gosta de dormir de manhã

Eu não me importo
Se você trabalha de terno e gravata
Ou se vive de bermuda e havainas
Se você vota no PSDB ou é petista
Se gosta de Beatles e odeia Rolling Stones

Não me importa se você não acredita em Deus
Se é budista, judeu, católico ou evangélico
Se é hipster ou playboy
Se tem tatuagem
Se usa roupas coloridas ou uniforme

A importância da mente

não tem textura.


segunda-feira, 28 de janeiro de 2013

São Paulo




Foto: Alessandra Marcuzzi

São Paulo é bela quando vista do alto
São Paulo é frescor quando caminha-se ao lado dela
São Paulo é um namorado que fuma - precisa de janela e céu aberto
São Paulo vale cada centavo quando não vende-se, mas rende-se
São Paulo não é um estado de espírito, é seu espírito em que estado?
São Paulo não é boa nem má

São Paulo é você.

Parabéns São (tantas emoções) Paulo :-)

terça-feira, 1 de janeiro de 2013

Intocáveis


"Intocáveis" - dos diretores franceses Olivier Nakache, Eric Toledano.


Na história (adaptação de um livro autobiográfico) Philippe, que ficou tetraplégico após um acidente de parapente, convoca candidatos para a vaga  de assistente pessoal, vaga que permanece em grande rotatividade já que poucos resistem no trabalho. Em uma dessas seleções conhece o carismático Driss, que fora expulso de casa pela mãe, e está totalmente sem rumo. Aos poucos, uma profunda amizade surge trazendo grandes transformações em suas vidas.

Esse filme tem sido um sucesso histórico para o cinema francês com grande bilheteria no mundo inteiro e vejo muitas razões para que isso aconteça: é um filme que cativa por sua humanidade e leveza. Não me lembro de algum outro filme onde uma "limitação" do porte da tetraplegia tenha sido retratada com tanta delicadeza e bom humor. Porque acredito que delicadeza não é dizer a palavra adequada, mas estar de igual para igual com o outro de forma autêntica. E autenticidade é o que não falta na relação de Driss e Philippe.

Driss, com sua "ignorância" chega a Phillipe com a única intenção de ter seu seguro desemprego preenchido. Na entrevista, como não sabe do que se trata, responde conforme seu contexto de vida 'as perguntas para a vaga e dessa forma encanta Phillipe, mesmo com sua seriedade e até certa amargura de quem está cansado de contratar pessoas que não durarão na função de assistente/cuidador. Cada um responde da forma como sabe e a empatia é criada. A partir daí o que vemos é o desenrolar encantador de conexão humana. Já não há apenas quem eu sou e quem você é mas uma curiosidade e interesse genuínos sobre a vida um do outro. E melhor, Driss quando se realciona com Phillipe o faz de uma forma tão natural que até esquece que ele é "deficiente" e Philliipe nem se lembra que Driss é "um ex detento". (A cena de Driss dando o telefone celular para Phillipe pegar é uma das melhores)

O filme me lembrou uma história que o Lama Padma Samten (professor do Centro Budista que frequento) contou numa palestra recente, é mais ou menos assim:
Em uma detereminada época, em algum lugar no Oriente (não lembro bem se Nepal ou Tibet) não usava-se ter documento de identidade, até porque as pessoas se conheciam pela convivência nas cidades. Quando passou a ser necessário, uma certa vez um homem indagado sobre seu documento disse:
- "Mas por que você quer meu documento? Eu estou aqui! Para que precisa da foto? Para comprovar que eu que estou aqui na sua frente sou eu?"
E então o Lama comentou sobre o quanto agimos assim na vida, pedindo credenciais, documentos  e nos esquecemos de que tudo o que precisamos já está ali na nossa frente para que nos relacionemos com a pessoa.
E é isso que vemos na dinâmica dos dois amigos: por mais que cada um reaja ou aja conforme o meio a que pertence, a empatia faz com que haja uma natural abertura de um com o outro que dispensa  credenciais, criando um vínculo de confiança sem esforço que flui mesmo em momentos em que discordam ou discutem.


Acredito que essas sejam algumas razões para que o filme nos toque tanto: porque desejamos relações mais fluidas, onde não prevaleçam o "cheio de dedos", "pisar em ovos", aquele "respeito" demasiado que no fundo é mais medo de expor-se ao outro do que um respeito genuíno... Relações onde possamos nos relacionar com todo o potencial que existe para além de qualquer limitação ou dificuldade nossa e dos outros. Porque apreciamos relações horizontais, onde há troca, parceria e tratemos e sejamos tratados como semelhantes... Porque queremos mais empatia, alegria, humor. Desejamos ser arrebatados para além dos rótulos que nós mesmos nos damos e das caixas onde nós mesmos nos colocamos. Porque queremos viver a vida de uma forma mais leve sejam quais forem as condições em que estejamos. Porque desejamos compartilhar nossa vida. Porque queremos ser olhados e não apenas vistos. 

Porque somos mais especiais quando nos lembramos do quão comuns somos.

Acho que esse diálogo do filme resume a essência da amizade dos personagens e de qualquer boa relação:

Driss: Você quer fugir daí?
Phillipe: Sim
Driss: Sem perguntas?
Phillipe: Sem perguntas.