sexta-feira, 5 de fevereiro de 2016

Ensaio sobre relações patriarcais

Saturn devouring his children - Daniele Crespi

Saturno ou Cronos (equivalente grego) é um titã na mitologia greco-romana que casou-se com sua irmã Reia que lhe deu seis filhos.
Como tinha medo de ser destronado por causa de uma maldição, Cronos engolia os filhos ao nascerem.


"O mal da civilização é a mente patriarcal. Não me refiro apenas 'a sociedade patriarcal que faz com que os machos predominem sobre as mulheres e tenham um acesso mais fácil ao poder e economia. Refiro-me a uma paixão pela autoridade. Pelo ego, o ego patrístico, um complexo de violência, excesso, voracidade, consciência isolada e egoísta, insensibilidade e perda de contato com uma identidade mais profunda. Há quem diga que faz parte da natureza humana e sempre foi assim. Pois não é verdade. Esta mente, longe de ser inerentemente humana, em realidade começou a gestar-se há apenas 6.000 anos atrás quando, frente a uma crise de sobrevivênci, certas populações agrícolas arcaicas indo-européias e semitas tiveram que voltar a serem nômades e acabaram convertendo-se em comunidades de guerreiros e predadores.
Essa mente se manifesta nas relações de domínio-submissão e de paternalismo-dependência, que interferem na capacidade de estabelecer vínculos adultos solidários e fraternais. O cérebro patriarcal- racional apela 'a competição, enquanto o feminino apela 'a cooperação."  Claudio Naranjo (tradução Angelica Rente)


Há um padrão comum onde fomos ensinados a valorizar um papel e uma figura "provedora".
Em primeira instância um "chefe de família" (que pode ser um pai, mãe, ou outra pessoa que represente esse papel). Alguém que nos traz conforto e recursos. Alguém em quem depositamos as fichas de fazer por nós o que nós mesmos não nos consideramos capazes e, em alguns outros contextos, nos ensinando que a vida responde bem a quem responde 'as expectativas de um senso comum e por isso somos premiados. E quem não responde bem 'a essas expectativas é excluído, seja com uma punição ou outras atitudes sutis ou enérgicas de exclusão.

Em segunda instância (não necessariamente nesta ordem) a Corporação faz esse papel, nos provendo de benefícios, planos de carreira, meritocracia e "segurança" quando nos adequamos e sobrevivemos bem ao seu sistema, onde somos mais uma vez recompensados pelo atendimento destas (na maioria dos casos chamada de meta) ou somos demitidos e excluídos no caso contrário. A hierarquia e competição são as ferramentas que melhor mantêm o funcionamento dessas estruturas.

Numa terceira instância o Estado assume o papel de "pai de todos" onde apostamos mais uma vez de que ele nos proverá de soluções que nos julgamos incapazes de conseguir e onde ele mesmo assume este papel para que sigamos incapacitados e dependentes. A burocracia é uma das grandes ferramentas para isso.

Numa quarta instância há as instituições financeiras (com sua maior representação como bancos) que tratam seus clientes como "filhos" ou "parceiros" sabendo de nossa predisposição a estar no papel de incapacitação e impotência principalmente quando nosso referencial é a independencia (não precisar de ninguém, fazer tudo sozinho), sucesso (um lugar muito distante que apenas a alguns é permitido chegar) e que o valor se mede por uma quantidade de moedas. Débito é o óleo que faz as correntes de sua estrutura permanecerem lubrificadas.

Numa quinta instância há as religiões que em muitos casos assumem o papel de "pai da sabedoria", onde mais uma vez depositamos nossas expectativas de soluções e respostas (não nos enganemos, espiritualidade também pode ter crachá e metas) numa figura que tem um tom paternal de acolhimento quando achamos que todo o mais nos parece faltar (nossa relação assim com os mestres, pastores, clero, rabinos etc é um dos fatores que gera o binômio idolatria/aversão a uma figura de um "guru" e a deturpação de boas práticas e ensinamentos). Hierarquia, falta de acesso, pouca diversidade de pensamentos e exclusão é o que nutre o funcionamentos dessas estruturas em tom patriarcal.

Todo esse raciocínio para quê?
Para dizer que os problemas são os "chefes de família", as corporações, o Estado, os bancos e religiões?
De forma alguma. Para compartilhar uma investigação muito particular e pessoal de que o fator em comum não é a existência deles (que têm suas funções complexas) mas nossa relação com eles a partir de um sentimento de incapacidade e falta de recursos internos e externos.
E de onde isso vem?
Dessa nossa crença alimentada pelo Patriarcado fundamentada em valores como independência (garantir o seu e não depender dos outros, não compartilhar, reter, acumular , que valor financeiro define e resolve a maioria das questões (nos faz mais aceito, capacitado e pertencedor). E quem não se ajusta a esse modelo está fadado a ser "menos afortunado", fracassado e não sobreviverá (sejam aqueles que não possuem um provedor, um emprego "estável", uma "iluminação", cidadão de "bem" pagador de seus impostos ou honrados clientes que não possuem o nome "sujo").

Onde está o engano de tomar esses referenciais como realidade da vida?
Eles não possuem lastro. Eles duram enquanto são alimentadas suas estruturas de poder.
E a partir do momento em que estamos imersos neste tipo de mente e nos relacionamos com o mundo desta maneira perdemos completamente a noção de quem alimentou o que, de onde isso se origina, de que lugar isso nos fisga e recebe nossa energia de vida.

Nossa potência de criação e materialização é sempre muito maior em conjunto onde o valor de autonomia é mais relevante neste contexto do que uma independência isolada e competitiva. Se nossas relações, sejam quais forem, estiverem pautadas em consumo e uso poco interagiremos. Sem iteração não há lastro, há abstrações, conceitos, especulações assumindo um caráter "virtual" e pouco interdependente, que é realmente como a vida flui, aceitemos isso ou não.
É a interação, o contato para valer que nos conecta uns aos outros, nos transforma, assim como acontecem com as sinapses do nosso cérebro.

Se nos abrimos a uma visão de que podemos confiar no processo da vida com sua interdependência, nos engajamos mais em formas coletivas de realização e distribuição de recursos. Mesmo que o façamos individualmente em alguns momentos o referencial de que o coletivo é muito relevante está ali. Desta forma, exponencializamos a geração de valor, pois potências de muitos seres com autonomia gera benefícios a todos e não a apenas alguns e então podemos caminhar com a compreensão de que de fato todos estamos ligados uns aos outros e assim precisamos uns dos outros para viver.

Todos nós temos capacidades e habilidades e cultivando lastro interno elas podem  florescer e ser oferecidas de maneira mais ampla.
Quem sabe a autonomia de cada um em sua potência, conectada uns aos outros por estarmos numa experiência humana não torne a vida mais potente de ser desfrutada por todos nós?