sexta-feira, 28 de setembro de 2012

Relatos de uma fobia (ou qualquer coisa que pode acontecer)


"Fobia (do Grego φόβος "medo"), em linguagem comum, é o temor ou aversão exagerada ante situações, objetos, animais ou lugares. Sob o ponto de vista clínico, no âmbito da psicopatologia, as fobias fazem parte do espectro dos transtornos de ansiedade com a característica especial de só se manifestarem em situações particulares." Wikipedia

Tirar sangue não era algo muito agradável, mas até então nunca tinha tido grandes problemas nesses momentos. Eis que um dia da minha adolescência acontece algo marcante em relação a isso (para alguns, traumático) e de repente o que era de certa forma corriqueiro virou um inferno, que alguns terapeutas diagnosticaram como fobia.
No começo, era apavorante só de pensar, tanto que cheguei a ter convulsões uma ou duas vezes em laboratórios. Depois, comecei a evitar esses exames exatamente pelo efeito que causava em mim e, desde que descobri a maravilhosa opção da coleta domiciliar comecei a lidar cada vez melhor com esse medo, embora a aflição sempre se extendesse cada vez que o médico achava imprescindível fazer o exame. O mais curioso é que nunca deixei de fazê-los, porém os adiava até onde dava.  O pior  sempre era passar pela angústia que precedia o "dia D": ficava dominada por um monstro gigante que saia do armário e, para o espanto da minha mente que insistia em dizer "é só uma picadinha", ele era real e se tornava meu único foco na ocasião. Meu medo não era agulha, ver sangue, nem era a dor da picada, mas o que isso representava e ao que isso remetia não só em imaginação mas incorporado, a ponto de sentir como se  todas as vezes fossem aquela primeira vez onde o  "start" acontecera. Mesmo tomando contato e compreendendo a "raiz" do problema, na hora H o medo sempre se manifestava de forma irracional, fosse desmaiando ou passando bem mal. Busquei várias formas de tratar disso desde terapia, hipnose, meditação e muitas outras outras mais "alternativas" e, sinceramente, acho que todas tiveram sua contribuição.

Então, semana passada tive que levar meu gato 'a veterinária para os exames de rotina e um deles incluia colher sangue. Já tinha visto o Simba passar por diversas coisas quando ficou doente e isso nunca me impressionou pelo procedimento em si, mas o dó enorme de vê-lo sofrendo porque ele se contorcia, rosnava, tentava fugir, enfim, era uma confusão. Dessa vez, para espanto da veterinária (e minha alegria) o Simba só deu uma rosnadinha e a deixou colher o sangue com tranquilidade. Isso foi pra mim o que um torcedor fervoroso de futebol deve sentir quando seu time ganha o campeonato: minha felicidade foi tão grande ao ver que ele havia reagido de forma diferente ao mesmo cenário que isso me inspirou de uma maneira inexplicável: senti que chegara minha vez de honrar minha "fobia".

Depois de dois anos enrolando pra fazer os exames, peguei o telefone e marquei a coleta domiciliar para um dia depois para não ter desculpa. Confesso que na hora de começar meu jejum deu um certo nervosismo mas tentei não me fixar no "drama" e pensar cada vez mais naquilo como realmente era. Na noite anterior tive vários pesadelos de pessoas tentando tirar meu sangue e não conseguindo e, quando acordei, cheguei a ter medo por causa disso. Então, fui prática na estatística: até hoje nunca havia dado pra trás em nenhuma vez que marquei exames e o máximo que acontecia era desmaiar e voltar, na minha cama. Sim, na minha cama, com a luz indireta, incenso aceso e cd de mantra que sempre colocava como ritual. De repente, entendi o que significava "a minha cama" e surgiu uma gratidão muito grande pelo privilégio de poder  passar por aquele momento dramático com tantos benefícios, aí o foco mudou. Assim que a enfermeira chegou eu estava tão grata que o primeiro impulso foi abraçá-la e agradecer a visita. Acho que ela não entendeu nada, mas foi receptiva rs (normalmente se não simpatizasse com a enfermeira poderia até desistir e chamar outra, mas isso só aconteceu uma vez rs). Conversamos com bom humor como se fosse um exame qualquer (só que sem pensar que estava fazendo isso ;-)


"Que o seu medo tenha nome antes que você possa bani-lo" Mestre Yoda (Guerra nas Estrelas)

Chegou a hora. Deitei na cama com o ritual em ação, pus o travesseiro no rosto e pedi pra que ela não me avisasse quando fosse colocar a agulha e que não falássemos sobre isso. Começamos a bater papo sobre assuntos diversos até que eu senti a agulha entrar. Suei um pouco nas mãos e comecei a inspirar e expirar, sem perguntar nada, em silêncio (normalmente eu contaria até 60 e se passasse disso começaria a passar mal). De repente o instante se congelou e a única coisa que havia naquele momento era eu e uma agulha na minha veia. Resolvi conhecê-la, deixá-la fazer seu papel sem intereferência, senti-la em todo o seu efeito, ficando a sós naqueles breves segundos.  Ela incomodava, mas não chegava a ser uma dor e comecei a imaginar meu sangue subindo por  dentro dela e que ia para um tubo e outro e outro e como não deve ser fácil ser uma agulha, porque muita gente não tem simpatia por ela, mas é uma missão bem importante. Fiquei imaginando quem teve a idéia de criar uma agulha e o exame de sangue e o quanto de gente isso já deve ter beneficiado.
E como nunca havia dado conta, tirar sangue era realmente mais rápido do que eu imaginava.
Levantei da cama e não acreditei que estava bem, parecia um sonho bom! Chorei, mas foi de emoção. Agradeci a enfermeira, fiz alguma piada e abracei meu gato. Depois de algumas horas tirei o curativo e fiquei olhando aquele furinho no meio do braço, com um misto de orgulho, alegria, gratidão, como uma medalha de ouro por algo que se consegue sem esforço. Sim, sem esforço, esse é o ponto. 

Descubro que meu equívoco não era ter medo, ou ter medo por trauma, ou me identificar com o medo ou qualquer análise que se possa fazer e que até tem o seu sentido (embora agora perceba o quanto de tempo gastei em explicações e masturbações mentais a respeito de uma solução). Meu equívoco foi querer que uma agulha tivesse o impacto de uma pluma no meu braço e me lembrei que, nem quando usava anestésico local isso era possível. Uma certa liberação daquilo começou a acontecer quando eu entendi que uma agulha é uma agulha, que ela penetra e tem uma função e que a função podia ser positiva. Quando optei por conhecer a agulha, tudo mudou.

Como me sinto? Mais disposta para uma próxima de uma forma bem mais honesta e menos "mitificada" que jamais aconteceu. Não sei como será de fato, mas isso não importa muito, só por hoje o que era "fobia" me fez sorrir. ;-)

Texto relacionado: Medo

5 comentários:

isabella disse...

hahaha, nossa, alê.

acabou que eu ri da sua fobia, veja só! achei engraçada (e muito válida) sua maneira budista de olhar para a agulha! adorei, parabéns!

Alê Marcuzzi disse...



hahahaha é a sua cara isa! adorei que vc leu e comentou! quanto a maneira budista, deve ser meio default já pq de verdade na hora não tinha nada de budismo ali não! hahahhahah

obrigada!

bjs

Ulisses disse...

Fantástico! Adorei o texto e a sua vitória contra o medo!

Oswaldo Viana Jr disse...

Bárbaro!!! Como transformar uma fobia em literatura... Parabéns!!

Anônimo disse...

Gostaria de ter sua coragem. .. passo mal só d imaginar. Nunca consegui tirar sangue..e olha q tenho 30 anos!
Ana