sábado, 15 de dezembro de 2012

2012 uma odisséia no espaço


Dois mil e doze, gosto da pronúncia.
2012 um ano que, como brinco com alguns amigos, foi como passar por uma máquina de tirar cascas, uma centrífuga, um moedor de carne ou qualquer coisa do gênero. O que diferencia 2012 de um 2010 ou 2011, é que nos anteriores a falta de consciência de algumas coisas foram a razão para que fosse tão mais difícil, mesmo com tantas coisas a favor.
Mas 2012 não, ele foi a favor com tantas coisas fortes e profundas. Como aquela etapa final de um jogo, como aquela semana final de uma novela, como aqueles 30 minutos finais de um filme de aventura, que só fazem sentido mesmo para quem passou pelas fases anteriores ou acompanhou o enredo todo. 2012 talvez tenha sido o primeiro ano em que eu consegui olhar de uma perspectiva maior para os fatos: a perspectiva de uma jornada de vida. E tudo que era dolorido ficou comovente pois poder olhar para sua  própria jornada após percorrer cada caminho, degrau, fase, ou o que seja, passando pelo que é necessário, dá uma sensação de dignidade. E isso desperta uma gratidão profunda.  

2012 me desafiou mais intensamente por dentro. Não deu muita sopa para as minhas boabagens, nem tempo para dramas. É a máquina de tirar cascas, uma centrífuga que parece que te processa para dar suco. Em alguns momentos achei que não suportaria, como aquela trilha incrível mas muito íngreme e longa que fiz no Chile uma vez, e que, chegando ao final quando pensava que era só curtir a vista tão esperada, tinha mais uma montanha de pedra para escalar. E eu escalava exausta achando que não iria conseguir, já conseguindo, e uma galerinha que já tava no topo incentivava "Vem que você consegue". E você consegue, mas a sua maneira, a seu custo.

2012 foi assim, como a trilha de Torres del Paine: o caminho mais profundo é solitário porque depende única e exclusivamente da sua resistência, persistência, paciência, resiliência e principalmente: consciência. Mas não é de forma alguma sozinho, como o final do Big Fish, de Tim Burton: tem muita gente te incentivando, torcendo e inspirando a seguir e também os que comemoram contigo a tua morte.

2012 não foi um 2011, onde eu estava radiante socialmente, atendendo naturalmente 'as demandas sociais de forma mais frequente. 2012 eu tava radiante socialmente mas era em capítulos especiais, depois de ficar mais quietinha, respeitando o espaço de contração e expansão.
2012 eu passei por situações muito desafiadoras que muita gente que nem imagina até hoje. Porque  em 2012 eu consegui guardar para mim e processar as maiores dores e também  as grandes alegrias, sem aquela necessidade de 2008 por exemplo, de sair pedindo conselhos ou compartilhando as delícias ao mundo. 

2012 foi para poucos, mesmo estando cada vez mais para todos.

Um ou outro amigo ficou pra trás, sem culpa, na paz, como aquele vento que leva e você entende que é momento de ir pra outro lugar. Conheci muitas pessoas novas, alguns resgates de amizades antigas muito felizes e outros que ficaram por perto mais constantemente. 2012 me ensinou a idealizar menos as amizades, me trouxe um frescor de apreciá-las como são mesmo em momentos de indignação e tristeza ou alegria e euforia. 2012 me deu muita saudade de muita gente que vi muito pouco e quero ver mais. 2012 revalidou (mais e mais) a importância da amizade na minha vida,  ou melhor, das relações positivas: tesouro cada vez mais precioso que levo comigo mas cada vez menos da forma como idealizava e me idealizavam. Em 2012 eu tive mais ternura com a idealização dos outros em relação a mim, e menos paciência com a minha em relação a mim mesma, o que ajudou um bocado.

2012 ficou clara a epópeia com todos os seus capítulos, bonito de ver.  E mais um mundo acabou, tão belo como Melancholia do Lars Von Trier.
Hoje, ainda em 2012 eu compreendo que 2012 não foi um ano. Foi uma vida.


E que venha 2013, com o que quer

que seja.


sexta-feira, 7 de dezembro de 2012

Make up

 Uma noite em São Paulo - foto: Alessandra Marcuzzi



Gosto da decadência elegante da maquiagem borrada
Derretida no movimento

Honesto.

Olheira de rímel borrado.
O lápis que ainda sobrevive no canto interno do olho

Profundo.

O pouco de base que fica e deixa o rosto craquelado de linhas
Formando um caminho misterioso entre o que era e o que é
O pó que não dá mais brilho

Pálido.

Os restos de batom vermelho
Corando a boca
Como um vinho que escorreu numa distração

Encantado.

O cabelo suado que preso parece que foi engomado
Solto é como um alter ego

Poder.

Gosto do visual anárquico
Como uma ironia ao controle da beleza
Que desafia a ordem anterior
Impõe-se

Acidental.



Dedicado a Lou Reed. R.I.P 27/10/13

terça-feira, 4 de dezembro de 2012

Bird

 
When I returned from so many journeys,
I stayed suspended and green
between sun and geography -
I saw how wings worked,
how perfumes are transmitted
by feathery telegraph,
and from above I saw the path,
the springs and the roof tiles,
the fishermen at their trades,
the trousers of the foam;
I saw it all from my green sky.
I had no more alphabet
than the swallows in their courses,
the tiny, shining water
of the small bird on fire
which dances out of the pollen.
Pablo Neruda

quinta-feira, 29 de novembro de 2012

Respeitável Público

Foto via @Teen & Art


Ela veste roupa e botas brancas e sobe por um tecido
Balança com muito impulso para frente e para trás
(como naqueles balanços que eu adorava no parque ou na pracinha da cidade do meu avô)
Com a leveza de um pássaro e precisa como um gato ela faz acrobacias com o vai e vem
Numa delicada entrega ao vazio além das cordas e a barra
E quando volta para o trapézio, é como uma dança

Meus olhos marejam

Alguém diz: ela está com um cabo de aço, aí não tem graça.

....

Ele veste roupas estravagantemente brilhantes
E dá boas vindas ao mundo da fantasia
(como quando ia aos parques de diversões)
Gesticula com as mãos com a leveza de um maestro do nada
E retira o tecido do que era antes num toque só
E algo novo surge, surpreendente
Numa delicada aparição de um vazio para outro
Ele faz desaparecer pessoas, uma moto e até aparecer um helicóptero

Meus olhos ficam hipnotizados de encantamento

Alguém diz: muito manjado, a gente sabe que é truque.

...

Você pode (até) acreditar no que alguém diz

Mas não perca o espetáculo.

domingo, 25 de novembro de 2012

Segredos de liquidificador

Água
Amêndoas
Tampa
Velocidade 8.

Nada.

Acende a luz pra ver se era falta de energia
Recoloca o copo e a tampa pra ver se estavam fora do lugar

Nada.

Será que queimou?
Solta um palavrão.

Nada.

Desencana e vai pra sala
...

Volta para tomar uma água e sorri como uma criança peralta:

O liquidificador estava apenas fora da tomada.

sexta-feira, 23 de novembro de 2012

Esmalte



 Another wall in the brick/Buenos Aires - Foto: Alessandra Marcuzzi

Ela sempre tem dúvida sobre o esmalte que vai passar.
E se passa ou não esmalte nas unhas feitas, sem excessos.
Assim que a manicure terminou: "Qual cor vamos passar?"
Ela deu um suspiro e pensou nos locais que pretendia ir e pessoas que iria encontrar, roupas que iria usar... Esse caminho não funciona para ela mas mesmo assim quase sempre é o mesmo roteiro...
Ela suspirou: "Não sei, daqui a pouco te digo."
Depois do pensamento ter ido bem longe do salão de beleza, a manicure pergunta de novo: "E aí qual cor vamos passar?"
Ela suspira e responde: Vermelho.

....

Depois de uma semana o vermelho foi descascando e a cor das unhas aparecendo.
Ela costuma deixar descascado, gosta do estilo que o mundo fashion chama de "podrinho" mas que para ela significa apenas as coisas no seu tempo, como são.
Mas como incomoda um esmalte descascado. Todo dia na hora de colocar os anéis, aquelas lascas de unha por debaixo de uma cor. Curioso que na hora do trabalho pouco faz diferença porque os dedos se perdem entre folhas, flores e baldes de água.
Agora ela fica em dúvida se tira ou não o esmalte, pensa nos locais que pretende ir, nas pessoas que vai encontrar, nas roupas que vai usar... Aquilo não funciona para ela mas mesmo assim é quase sempre o mesmo roteiro...
Ela deixa pra lá.
Depois de muitas coisas feitas durante o dia ela olha pros dedos das mãos na hora do banho.
Ela suspira e pensa: Descascado.

quinta-feira, 22 de novembro de 2012

Nos pênaltis



Assistindo um jogo de futebol uma amiga e um amigo conversam:

Ela: Posso te fazer umas perguntas e você me responde objetivamente? Porque sinceramente eu já sei que vai responder senão nem perdia meu tempo.
Ele: Diga.
Ela: Você me acha uma pessoa que fica querendo atenção?
Ele: Não, mas quem não quer?
Ela: Você me acha chata e cansativa?
Ele: Claro que não, você é uma das pessoas mais divertidas que conheço.
Ela: Você me acha arrogante?
Ele: Como assim? Você é uma das pessoas com quem mais me sinto 'a vontade. Como você pode pensar isso tudo de você?
Ela: Não sou eu, é um cara que disse isso pra mim.
Ele: Que cara?
Ela: Um que saí pra conversar algumas vezes.
Ele: Vocês ficaram?
Ela: Não.
Ele: Ah então tá explicado.
Ela: Você acha que eu me acho superior aos homens?
Ele: Claro que não! Senão por que eu me sentiria a vontade com você? Que conversa besta.
Ela: Você acha que eu sou direta e isso afugenta as pessoas?
Ele: Sim você é, e afugenta quais pessoas? Eu acho ótimo, pra mim afugentam pessoas que não falam logo o que querem dizer e ficam fazendo joguinhos. Você não é assim.
Ela: Acho que o cara que chutou não tava concentrado no jogo.
Ele: É, mas aquele pênalti do brasileiro foi bom, bem colocado.

segunda-feira, 12 de novembro de 2012

Casamento de verdade é sempre de mentira


Escher's Relativity - MC Escher


Mais um texto fora do trans mutando para o Papo de Homem, segue o texto na íntegra :-)

Para ser marido e mulher é preciso, antes de tudo, fantasiar ser marido e mulher.
“Mentiras são sonhos pegos em flagrante”
- do filme “Amantes e Infiéis”

Um estrangeiro estava num dilema: queria ficar no Brasil mas seu visto estava vencendo. Então, sua namorada brasileira propôs que ele se casasse de mentira com ela para que pudesse permanecer no país. O de mentira era no sentido de que estaria claro que eles se casariam apenas pelo visto e continuariam a se relacionar como namorados, mesmo morando juntos.
Paralelamente ele pergunta a uma amiga se ela poderia casar com ele pois assim se sentiria mais a vontade com o “contrato” já que não havia nenhum vínculo amoroso. Ele argumentava que não se sentia a vontade para casar com a namorada porque queria ser livre: e se ele quisesse terminar? E se ela de repente mudasse e começasse a levar o casamento a sério?
Ele não se sentia à vontade para casar com ela de mentira porque a relação era recente e ele não queria se sentir preso.
O mais curioso é que, em nenhum momento, ele considerou questões práticas como bens, burocracia, nem mesmo monogamia. Gostava dela e queria ficar só com ela.
Pelo contrário, suas dúvidas eram daqueles sentimentais e difíceis de mensurar: como dividir e como romper, como casar e como descasar.

sexta-feira, 28 de setembro de 2012

Relatos de uma fobia (ou qualquer coisa que pode acontecer)


"Fobia (do Grego φόβος "medo"), em linguagem comum, é o temor ou aversão exagerada ante situações, objetos, animais ou lugares. Sob o ponto de vista clínico, no âmbito da psicopatologia, as fobias fazem parte do espectro dos transtornos de ansiedade com a característica especial de só se manifestarem em situações particulares." Wikipedia

Tirar sangue não era algo muito agradável, mas até então nunca tinha tido grandes problemas nesses momentos. Eis que um dia da minha adolescência acontece algo marcante em relação a isso (para alguns, traumático) e de repente o que era de certa forma corriqueiro virou um inferno, que alguns terapeutas diagnosticaram como fobia.
No começo, era apavorante só de pensar, tanto que cheguei a ter convulsões uma ou duas vezes em laboratórios. Depois, comecei a evitar esses exames exatamente pelo efeito que causava em mim e, desde que descobri a maravilhosa opção da coleta domiciliar comecei a lidar cada vez melhor com esse medo, embora a aflição sempre se extendesse cada vez que o médico achava imprescindível fazer o exame. O mais curioso é que nunca deixei de fazê-los, porém os adiava até onde dava.  O pior  sempre era passar pela angústia que precedia o "dia D": ficava dominada por um monstro gigante que saia do armário e, para o espanto da minha mente que insistia em dizer "é só uma picadinha", ele era real e se tornava meu único foco na ocasião. Meu medo não era agulha, ver sangue, nem era a dor da picada, mas o que isso representava e ao que isso remetia não só em imaginação mas incorporado, a ponto de sentir como se  todas as vezes fossem aquela primeira vez onde o  "start" acontecera. Mesmo tomando contato e compreendendo a "raiz" do problema, na hora H o medo sempre se manifestava de forma irracional, fosse desmaiando ou passando bem mal. Busquei várias formas de tratar disso desde terapia, hipnose, meditação e muitas outras outras mais "alternativas" e, sinceramente, acho que todas tiveram sua contribuição.

Então, semana passada tive que levar meu gato 'a veterinária para os exames de rotina e um deles incluia colher sangue. Já tinha visto o Simba passar por diversas coisas quando ficou doente e isso nunca me impressionou pelo procedimento em si, mas o dó enorme de vê-lo sofrendo porque ele se contorcia, rosnava, tentava fugir, enfim, era uma confusão. Dessa vez, para espanto da veterinária (e minha alegria) o Simba só deu uma rosnadinha e a deixou colher o sangue com tranquilidade. Isso foi pra mim o que um torcedor fervoroso de futebol deve sentir quando seu time ganha o campeonato: minha felicidade foi tão grande ao ver que ele havia reagido de forma diferente ao mesmo cenário que isso me inspirou de uma maneira inexplicável: senti que chegara minha vez de honrar minha "fobia".

Depois de dois anos enrolando pra fazer os exames, peguei o telefone e marquei a coleta domiciliar para um dia depois para não ter desculpa. Confesso que na hora de começar meu jejum deu um certo nervosismo mas tentei não me fixar no "drama" e pensar cada vez mais naquilo como realmente era. Na noite anterior tive vários pesadelos de pessoas tentando tirar meu sangue e não conseguindo e, quando acordei, cheguei a ter medo por causa disso. Então, fui prática na estatística: até hoje nunca havia dado pra trás em nenhuma vez que marquei exames e o máximo que acontecia era desmaiar e voltar, na minha cama. Sim, na minha cama, com a luz indireta, incenso aceso e cd de mantra que sempre colocava como ritual. De repente, entendi o que significava "a minha cama" e surgiu uma gratidão muito grande pelo privilégio de poder  passar por aquele momento dramático com tantos benefícios, aí o foco mudou. Assim que a enfermeira chegou eu estava tão grata que o primeiro impulso foi abraçá-la e agradecer a visita. Acho que ela não entendeu nada, mas foi receptiva rs (normalmente se não simpatizasse com a enfermeira poderia até desistir e chamar outra, mas isso só aconteceu uma vez rs). Conversamos com bom humor como se fosse um exame qualquer (só que sem pensar que estava fazendo isso ;-)


"Que o seu medo tenha nome antes que você possa bani-lo" Mestre Yoda (Guerra nas Estrelas)

Chegou a hora. Deitei na cama com o ritual em ação, pus o travesseiro no rosto e pedi pra que ela não me avisasse quando fosse colocar a agulha e que não falássemos sobre isso. Começamos a bater papo sobre assuntos diversos até que eu senti a agulha entrar. Suei um pouco nas mãos e comecei a inspirar e expirar, sem perguntar nada, em silêncio (normalmente eu contaria até 60 e se passasse disso começaria a passar mal). De repente o instante se congelou e a única coisa que havia naquele momento era eu e uma agulha na minha veia. Resolvi conhecê-la, deixá-la fazer seu papel sem intereferência, senti-la em todo o seu efeito, ficando a sós naqueles breves segundos.  Ela incomodava, mas não chegava a ser uma dor e comecei a imaginar meu sangue subindo por  dentro dela e que ia para um tubo e outro e outro e como não deve ser fácil ser uma agulha, porque muita gente não tem simpatia por ela, mas é uma missão bem importante. Fiquei imaginando quem teve a idéia de criar uma agulha e o exame de sangue e o quanto de gente isso já deve ter beneficiado.
E como nunca havia dado conta, tirar sangue era realmente mais rápido do que eu imaginava.
Levantei da cama e não acreditei que estava bem, parecia um sonho bom! Chorei, mas foi de emoção. Agradeci a enfermeira, fiz alguma piada e abracei meu gato. Depois de algumas horas tirei o curativo e fiquei olhando aquele furinho no meio do braço, com um misto de orgulho, alegria, gratidão, como uma medalha de ouro por algo que se consegue sem esforço. Sim, sem esforço, esse é o ponto. 

Descubro que meu equívoco não era ter medo, ou ter medo por trauma, ou me identificar com o medo ou qualquer análise que se possa fazer e que até tem o seu sentido (embora agora perceba o quanto de tempo gastei em explicações e masturbações mentais a respeito de uma solução). Meu equívoco foi querer que uma agulha tivesse o impacto de uma pluma no meu braço e me lembrei que, nem quando usava anestésico local isso era possível. Uma certa liberação daquilo começou a acontecer quando eu entendi que uma agulha é uma agulha, que ela penetra e tem uma função e que a função podia ser positiva. Quando optei por conhecer a agulha, tudo mudou.

Como me sinto? Mais disposta para uma próxima de uma forma bem mais honesta e menos "mitificada" que jamais aconteceu. Não sei como será de fato, mas isso não importa muito, só por hoje o que era "fobia" me fez sorrir. ;-)

Texto relacionado: Medo

quinta-feira, 31 de maio de 2012

Todas as relações são abertas

"Bond of Union" | M.C. Escher



Há tempos ouço debates sobre qual será o modelo de relação mais comum no futuro. Entre defensores da monogamia e do poliamor, costumo brincar que fechada, aberta e de carne são esfihas; relação é outra coisa. Já que o que realmente nos une ou separa de uma pessoa não é um acordo pré-fixado, nem uma instituição, nem um papel, nem um título, na prática todas a relações são abertas.
A abertura, mesmo em uma relação monogâmica convencional, é uma qualidade inalienável, irrevogável. Não há tranca que segure os deslocamentos da vida.
O que nos mantém ligados uns aos outros é a conexão estabelecida, que independe, inclusive, de estar ou não fisicamente com a pessoa. Podemos estar disponíveis para outros estando com um parceiro, como podemos estar menos disponíveis a outros apenas pela ligação com alguém com quem sequer namoramos. Podemos estar disponíveis mas não chegarmos às vias de fato, como podemos chegar às vias de fato estando com outro parceiro sem que isso afete essa conexão afetiva. As variações são tantas que podemos dizer que vivemos em constante suruba e monogamia ao mesmo tempo, por liberdade original, e mudar o rumo e a forma de se relacionar a qualquer momento, mesmo que tenhamos feitos acordos, contratos, promessas.
Alain de Botton, no brilhante livro Religião para ateus, diz que os ateus perdem muito tempo querendo provar a não-existência de Deus e se esquecem do que fazer diante da não-existência de Deus. Então investem muita energia contra aqueles que praticam seus rituais religiosos perdendo a grande oportunidade de ter algumas experiências para além dos dogmas. Botton mostra como as religiões se apropriam de rituais pagãos. O Natal, por exemplo: o que realmente faz as pessoas aderirem não é o significado religioso em si, mas a experiência de distribuir presentes, compartilhar uma ceia, se reunir para celebrar. O verdadeiro sentido do Natal é a prática do seu significado, não o contrário. O mesmo acontece a qualquer tipo de relação.
O valor de um relacionamento é dado pelo que ela efetivamente é em experiência, sendo inútil achar que um rótulo vai salvaguardar ou dar origem a alguma coisa. Na hora H, tudo isso é absolutamente ineficiente, exatamente como pensar em fazer dieta e colocar um aviso na porta da geladeira pra lembrar, mas assaltar a geladeira um pouco a cada dia. Fazemos efetivamente dieta quando não precisamos mais lembrar que estamos em dieta, paramos de fumar quando já não lembramos bem porque fumávamos.
O rótulo só faz sentido quando a relação vivida o dispensa – interessante paradoxo.
O que ocorre a maior parte do tempo é uma burocratização dos relacionamentos, não apenas em formato mas principalmente em conduta. Precisamos de uma definição para nos certificarmos de que tudo vai dar certo, não podemos deixar margem para erro e reclamações posteriores. Montamos um projeto e tratamos o outro como um de seus objetos. Em vez desfrutar a relação, apenas mantemos uma relação e posicionamos o outro como uma meta de um projeto.
Fazemos esforços para evitar o que possa ser desagradável, nos preocupamos demais em acertar e muito pouco em vivenciar com nossos próprios olhos, tato, escuta, paladar e corpo, desperdiçando a parte mais saborosa das relações, que é explorá-las, desbravá-las. E é justamente essa conduta que atinge o ponto vital das relações, fazendo com que fiquem apáticas, anêmicas, sem fluidez.
Não percebemos que o comprometimento vem antes da promessa, que o amor vem antes do pedido de casamento, que a conexão vem antes da razão. Na ânsia de controlar, colocamos o carro na frente dos bois e definimos formatos de relações para garantir segurança, enquanto ironicamente evitamos nos expor ao contato pra valer, sem garantias. Abertos.
Em minha própria experiência constato cada vez mais que os verdadeiros vínculos são mantidos por pura naturalidade e relaxamento, quando a promessa já está acontecendo e não precisamos oficializá-la, quando o sexo é praticado e não investigado, quando a disposição existe mesmo diante de condições externas desfavoráveis.
"There’s nothing to decide. There’s just walking forward."
–Miranda July
Então a "fidelidade" pode ser estar na relação 100% com tudo que faz parte dela, independentemente de exclusividade, pois a conexão estabelecida tem um sentido mais amplo e profundo. A "infidelidade" é justamente o oposto: não é um caso extraconjugal ou não, é uma manobra do desejo, uma artificialidade, é oferecer seus pedaços, é mentir descaradamente, para você mesmo.
Os enganos que mascaramos são como fingir um orgasmo: nós mesmos recebemos de volta aquilo que nos insatisfaz enquanto tentamos fazer o outro acreditar que nos contenta.
Se olharmos as relações como parcerias, em que estamos compartilhando com o outro nosso caminho, espaço, ideias, sentimentos e momentos, não como burocracia, onde temos de cumprir um roteiro pré-estabelecido, podemos vivê-las com mais leveza. Precisamos entender que o outro anda pelo mesmo espaço de liberdade que temos sozinhos, e que juntos esses espaços deveriam se ampliar ainda mais e não se restringir para que haja uma manutenção e durabilidade que atenda nossas pequenas expectativas de controle. Quanto mais relaxados estivermos diante das surpresas e aventuras do terreno de se relacionar com alguém, mais abertos estaremos ao que vier pela frente.
Da próxima vez em que tiver dúvidas sobre qual tipo de relação está vivendo, parta do seguinte ponto: todas.


* texto meu originalmente publicado no Papo de Homem





quinta-feira, 22 de março de 2012

Como pode ser?

 Landscape with butterflies- Salvador Dali


"Se procura o verdadeiro amor escolheu a mais difícil das tarefas.
Todo trabalho não passa de uma preparação.
Amar não significa renunciar, render-se a alguém.
É um chamado a maturidade." Kama Sutra


Deixar-se entrar
Fechar os braços para a intersecção
Abrir os braços para soltar (para onde for)
e nada foi perdido

Saber ser apenas homem
Saber ser apenas mulher

Falar com os olhos
Olhar com a boca
Existe o nascer do sol
Desnecessário outro tema

Olhar a mão
O formato do rosto
O desenho do sorriso
Sem que seja mão
Rosto
e sorriso

Experimentar
A pele
O gosto da textura
O cheiro da sensação
Eletricidade
Conexão

Como pode ser?
Dar a mão ao medo
e deitar-se com ele todo dia
E deixá-lo penetrá-la
até que seja capaz de ter êxtase com isso

O mundo inteiro dentro
O mundo inteiro onde caminha
Os espaços entre as distâncias
As distâncias que não existem

Beber do veneno
E não se contaminar

Espera-se que tudo se mantenha
Que a mágica se congele
Que o roteiro se cumpra
Que as respostas apareçam

Nisso perde-se a menina
e o menino
Perde-se a risada
Perde-se a lágrima
Perde-se a saliva

Querendo acertar
Joga-se a flecha
e ela pode doer muito
Caso atinja o alvo


Como pode ser?
Para estar apaixonado, ter o olhar do amor
Como para ser discípulo, ter o olhar do mestre




P.S: Texto meu reeditado. 25/02/12.

domingo, 5 de fevereiro de 2012

Amor fati e as coerências que a gente ama

Qual é a sua cor "erência" do dia?
"Não existe nota errada. Depende da que vem depois." Thelonious Monk
Há algum tempo tenho questionado sobre a palavra "coerência" e cada vez mais tenho  osbervado e desenvolvido um certo ceticismo sobre o seu significado. Por qual razão? Porque na maioria dos casos ela me transmite a idéia de ter que seguir uma sequência, ela remete a ter que corresponder a algo anterior como uma linha reta como única opção entre um ponto e outro.

Temos uma série de automatismos e padrões que seguimos inconscientemente e que nos fazem ter respostas "default" na vida. Fala-se muito em liberdade mas no fundo tudo o que espera-se é a coerência, e justamente ao que nos causa sofrimento! Se um relacionamento acabou espera-se um período de "luto" e se a pessoa está feliz significa que não gostava do outro. Se morre alguém próximo e não há demonstração de sofrimento dramático, passa-se por insensível. Se casou, precisa estar sempre radiante como sinal de felicidade, caso contrário parece que as coisas não estão bem. Se teve filhos então, nunca mais pode-se esboçar o menor sinal de tristeza para não parecer falta de amor. Se na separação, não odeia o ex- marido é porque ainda gosta dele. Se uma pessoa com quem você saiu não liga no dia seguinte é porque não quer nada, se liga, é porque quer tudo.
Então seguimos nos encaixotando em padrões e rótulos como um grande Pantone de algumas poucas possibilidades bem previsíveis, vivendo de forma bem limitada.

Um exemplo recente foi de uma amiga que tinha acabado de enfrentar o término de um relacionamento e convidei-a para sair para dançar. Ela respondeu que ainda não estava pronta (nossa resposta básica pra justificar a comodidade). Por conhecê-la, questionei sobre qual seria o tempo até ela estar pronta pra se divertir, pois passar por um luto por respeito a uma necessidade interna é uma coisa, mas validar a apatia por "coerência" é outra. Então, propus que ela viesse comigo e que poderia ir embora a qualquer momento, mas que experimentasse como era sair de casa carregando toda a aquela dor rumo a diversão. Bem, ela não só foi e dançou muito a noite inteira, como disse uma coisa que não esqueci: "Eu dancei com dor, e foi bom!" Demos uma gargalhada e disse: "Bem vinda a incoerência!"

Todos nós podemos experimentar um tantinho de lucidez num estalar de dedos, seja no sofrimento ou alegria, mas acreditamos ser necessário um preparo, uma qualificação, não nos vemos como já lúcidos, nos comparamos com as referências do que queremos alcançar e nos achamos inábeis. E para obedecer essa "coerência", muitas vezes nosso referencial é de vitória/derrota com a vida, justamente uma das causas de maior confusão e sofrimento. Estamos o tempo todo querendo acertar, e dessa forma controlamos e jogamos. E quando "erramos", nos culpamos, frustramos, sofremos. Porque sempre oscilaremos entre o vencedor e o perdedor, como se houvesse uma quantidade de erros e acertos a ser completada na vida, num placar que imaginamos ter que atingir. Mas logo adiante algo nos pega de surpresa e se não estivermos atentos caimos exatamente na mesma armadilha: porque não basta aprender, há de se compreender, de ir além, de ampliar o modo de ver e principalmente, colocar em prática o que fez com que a visão mudasse a partir dali.

"O samsara é coerente, a lucidez não é."

Qual é a liberdade? Blefar. Quando esperam de nós as cartas certas, nós apostamos com as cartas que temos e nos divertimos com o jogo. Como num jogo de poker, blefar diante de um impulso, um padrão aprisionante, algo negativo, quebrar a banca do que não nos serve mais e oferecer as fichas. Porque o fazemos não para provar ou ganhar algo, o fazemos por uma natural coerência com aquilo que nunca muda, seja qual for o jogo (olha eu citando uma palavra que não me faz muito sentido, quanta incoerência!).

Quando temos esse compromisso com alguma coerência na vida e estabelecemos dualidades que nos enquadram em algum tipo de configuração, temos um alcance muito limitado de possibilidades. Não temos essa necessidade se estivermos abertos, pois assim somos livres para transitar em qualquer situação, experimentando a plasticidade e a ludicidade da vida como uma criança. Isso pode até implicar aderirmos a alguns jogos, porém a visão ampla que não fixa referencial nos formatos, nos acompanha.

"Não é possível haver uma transformação que não seja por saltos, que não seja descontínua. O contínuo não é possível, temos sempre o discreto. A coisa era de um jeito, agora é outra. Isso não diz respeito ao objeto mas a própria mente. Todas as mudanças são não-causais. Continuidade é uma explicação que a gente dá. Estamos nos valendo de uma liberdade. A impermanência é um indicativo de que há uma natureza livre por trás dos fenômenos, que não respeita, que desafia nossas construções e coerências." Lama Samten 

Conforme caminhamos percebemos que não se trata de bom/mal, vitória/derrota, mas da nossa mente, do nosso olhar. Tudo pode ser transformado nesse exato minuto, e essa talvez seja a magia que a gente espera a cada segunda-feira, cada primeiro dia do mês, virada de ano, emprego, viagem, trabalho e relacionamento novos. Esperamos a virada, o salto, ansiamos que não sejamos somente mais os mesmos limitados, não apenas coerentes.
Então podemos nos divertir, de virar ano, mês e semana com o frescor de que viramos ano, mês e semana a todo momento, a cada estalar de dedos. Tudo que aspiramos está disponível agora e a cada pé fora da "coerência esperada", um sabor de que isso é possível.

"Não há normas. Somos todos exceção a uma regra que não existe." Fernando Pessoa

O que quero dizer como um "passo fora da coerência" é algo como o "amor fati" de Nietzsche, o "amor ao destino", a plena aceitação da vida como ela é e dos fenômenos como se apresentam, seja a alegria, a dor, a tragédia, o prazer, acolher o que parece "incoerente" com um olhar que transcende os formatos para uma visão mais vasta  do que aquela em que fingimos aceitar a vida esperando que algo ou alguém nos salve ;-)
Através da prática de perceber todo o jogo sem se prender a isso ou aquilo, é possível olhar "além da vida" e com isso, colocar um pé pra fora de uma mera existência para uma existência com mais significado, que inclua acolher tudo isso em nós e nos outros.

Tudo pode ser um instrumento para a vaidade ou uma identidade que queremos sustentar, do ceticismo a fé, passando por uma infinidade de crenças. E tudo pode ser um instrumento para evolução e lucidez, do ceticismo a fé, passeando por uma infinidade de mundos. Podemos escolher o jogo que queremos jogar por pura liberdade inerente a esse jogo que sempre muda e podemos escolher jogar sem jogo nenhum por pura liberdade de uma mente lúcida, que compreende a real natureza das coisas como "sendo tão sem substância e ao mesmo tempo tão real quanto um sonho" como sabiamente diz o Budismo. Então não levamos tão a sério as formas que as coisas tenham, mas ficamos mais atentos sobre o que nos move em direção a elas.

Seja no formato que for, o mais fascinante sempre é percorrer o próprio caminho.

Seja isso coerente, ou não. ;-)


"Amor fati: seja este, doravante, o meu amor! Não quero fazer guerra ao que é feio. Não quero acusar, não quero nem mesmo acusar os acusadores. Que a minha única negação seja desviar o olhar! (...) Nada querer diferente, seja para trás, seja para frente, seja em toda a eternidade. Não apenas suportar o necessário, menos ainda ocultá-lo, mas amá-lo...” Nietzsche



P.S: Dedico a todos os companheiros de caminho, especialmente a "parteira" Paulinha.