segunda-feira, 14 de setembro de 2009

Medo




"O caminho da covardia consiste em nos embutirmos num casulo, dentro do qual perpetuamos nossos processos habituais. Reproduzindo constantemente nossos padrões básicos de conduta e pensamentos, jamais nos sentimos obrigados a dar um salto ao ar livre ou em direção a um novo campo." Chogyam Trungpa


Falar sobre o medo é sempre mais fácil, pois assim o medo é uma idéia, um conceito. Assumir o medo com a profundidade que ele tem é o verdadeiro desafio e reconhecê-lo e abraçá-lo, muitas vezes algo que parece impossível. A beleza dentro das manifestações dos venenos da mente, é poder acolhê-los em você e nos outros, num ato de coragem. Não 'a toa a palavra destemor esteja tão presente na espiritualidade.
Convido vocês a tatearem, saborearem, olharem, ouvirem, sentirem o cheiro do medo.

Tentamos controlar, esconder, camuflar o medo pelo excesso ou pela falta. Dentro da impermanência da vida pude vivenciar recentemente algumas facetas dos medos de outras pessoas e, consequentemente, dos meus.
Numa situação, acompanhei uma pessoa que não conhecia num de seus maiores medos: escuro e da possibilidade de ver "coisas" no escuro. Ela queria viver a experiência mas tinha muito medo, a única possibilidade era se tivesse uma acompanhante, então me ofereci para acompanhá-la por ver nos olhos dela o tamanho da vontade de enfrentar aquilo. Ela confiou em mim de uma forma que me tocou muito e então fomos deixadas numa estrada sem iluminação, nas montanhas, onde me propus a acompanhar essa mulher.
Não entro em muitos detalhes pois seria leviano da minha parte com a grandeza da experiência. Ela permaneceu agarrada ao meu braço a maior parte do tempo mas nossa experiência foi mais leve do que imaginávamos por dois motivos fundamentais: confiança e solidariedade. Não sei os reais efeitos de ter experimentado o escuro pra ela, mas posso dizer que é uma pessoa de muita coragem onde o medo só fazia sabotar. Os fantasmas e marcas construídos por muitas experiências dolorosas de vida eram como aquela escuridão: ao acender a luz você saberia que um tronco de árvore não era um espírito e um cupinzeiro não era um gorila. Ela me achar tão corajosa e se achar tão medrosa era exatamente isso: dependendo de onde se jogasse a luz poderíamos ambas ser um ou outro. Saí dos meus fantasmas particulares para me entregar junto com ela numa jornada que no fundo, eram os meus medos também, só que de uma outra maneira...
Como acompanhante posso dizer que mesmo sem aquele medo, me identifiquei com as sensações por ela descritas, que são as mesmas que tenho para outros medos meus. Tenho muitas estradas escuras na vida onde vejo "coisas" e onde coisas aparecem do nada como sólidas e reais, uma delas é quando me relaciono com alguém. É fácil fantasmas antigos e alguns novos aparecerem e nessas horas também preciso de um braço para me agarrar e de alguém com calma pra me dizer que é um gorilinha no escuro e que quando acender a luz não passa de um cupinzeiro.
Somos todos infantis diante dos nossos medos e isso não nos diminui. Mas podemos aproveitar para olhá-los de uma forma mais lúdica, assim acessamos novos lugares onde o medo não será paralizador.

"Reconhecer o medo não é motivo para depressão ou desânimo. Porque temos medo, temos também potencialmente o direito a experimentar o destemor. O verdadeiro destemor não consiste em diminuir o medo, mas ultrapassá-lo." Chogyam Trungpa

Outra situação foi presenciar o medo de alguém próximo em forma de reações fortes e agressivas. Tive uma experiência do desastre que pode causar uma comunicação baseada no medo, mesmo quando há uma boa intenção. Como um animal machucado estamos prontos a atacar, e realmente atacamos. Vi uma pessoa com muitas qualidades positivas se transformar pelo medo. Medos que de certa forma compartilho, mas observar as reações me fez ficar mais alerta para os extremos a que pode levar.
Vi o medo da rejeição, o medo do abandono, orgulho (medo de ter as fragilidades expostas) e principalmente um "personagem" querendo se proteger com palavras duras que só faziam machucar. Também tenhos os mesmos medos e posso machucar muito por isso, então mais do que nunca era hora de olhar para a pessoa como um espelho.
No começo mantive a tolerância, mas confesso que depois houve muita raiva. Raiva por ser tão mal compreendida mas principalmente raiva das minhas fragilidades e paradoxalmente, da minha força que parecia confrontar diretamente os medos daquela pessoa. Na sequência retomei o prumo e me questionei de que eu realmente estava com medo e como uma cebola sendo descascada descubro que não há miolo, só cascas construídas. O medo não gera aprendizado em si, mas conhecer suas causas e transformá-las pode ser libertador.

Cena de Zabriskie Point, de Michelangelo Antonioni

Caminhando pela estrada do medo, quantas mentiras contadas para proteger nossos "personagens"? E quantas palavras, energia e atitudes oferecidas ao nada? Temos medo e não somos honestos, temos medo e interpretamos os papéis que julgamos mais seguros, temos medo e não agimos, temos medo e somos impulsivos, enfim as formas que o medo toma são infinitas. Descubro que tenho medo de onde posso chegar com minha coragem. Tenho medo do quanto sou capaz de amar e me entregar. Tenho medo da minha inocência. E por que? Porque são conceitos. Quando a coragem é energia no corpo e acontece, não há beco para o medo. Quando o amor surge e a entrega é natural, os limites não existem. Quando olho com olhos novos e conecto com a simplicidade, qual problema resiste? Acredito que o que mais tememos são nossas capacidades e não nossas inabilidades. Não acredito que nosso medo seja mesmo do fracasso, mas do que seremos na nossa inteireza.

O medo aparece quando controlamos e queremos manter, mas a beleza que pode acontecer depois de tudo desmoronar é saber observar e relazar nos destroços. Quando algo desmorona, nossas ilusões sobre nós mesmos desmoronam junto e isso é altamente libertador, se soubermos olhar assim.

A plenitude é estar presente nesse momento e isso requer uma disciplina de samurai e uma entrega incrível. 'As vezes uma maneira interessante é fazer como dizem nos Alcóolicos Anônimos: um dia de cada vez, só por hoje.
Porque o medo pode ser um vício.



P.S: Dedico ao Yargo, Douglas e Feijão pelas conversas inspiradoras.
Quando estou com muito medo, esse mantra me ajuda ;-)
Om gate paragate parasamgate bodhi soha

terça-feira, 1 de setembro de 2009

Como pode ser?



"Se procura o verdadeiro amor escolheu a mais difícil das tarefas.
Todo trabalho não passa de uma preparação.
Amar não significa renunciar, render-se a alguém.
É um chamado a maturidade."

Kama Sutra


Apaixonar-se
Deixar-se entrar
Pra deixar ele sair
Fechar os braços para a intersecção
Abrir os braços pra soltar (pra onde for)
e nada foi perdido

Saber ser apenas homem
Saber ser apenas mulher

Falar com os olhos
Olhar com a boca
Existe a lua
Desnecessário outro tema

Olhar o pequeno
Uma xícara na mesa
Um bombom
O formato do rosto
O desenho do sorriso
Sem que seja xícara
Mesa
Bombom
Rosto
e sorriso

Experimentar
A pele
O gosto da textura
O cheiro da sensação
O formato das curvas
Eletricidade
Química
Conexão

Como pode ser?
Dar a mão ao medo
e deitar-se com ele todo dia?
E deixá-lo penetrá-la
até que seja capaz de ter êxtase com isso

Olhar amplo
O mundo inteiro dentro
O mundo inteiro onde caminha
Expansão
Os espaços entre as distâncias
As distâncias que não existem

As identidades
Desejam
Manipulam
Controlam
É preciso andar na linha com o ego
mas é uma linha que leva de volta ao início do círculo
Beber do veneno
E não se contaminar

Espera-se que tudo se mantenha
Que a mágica se congele
Que o roteiro se cumpra
Que as respostas apareçam

Nisso perde-se a menina
e o menino
Se perde a risada
Se perde a lágrima
Se perde a saliva

Querendo acertar
Joga-se a flecha
e ela pode doer muito
Caso atinja o alvo


Como pode ser?
Pra estar apaixonado tem que se ter o olhar do amor
Como para ser discípulo, tenha de se ter o olhar do mestre


Om mani padme hum